Criminal. HC. Tráfico de entorpecentes. Nulidade. Interrogatório do réu não realizado antes do recebimento da denúncia.

EMENTA

I. Hipótese na qual ao paciente foi imputada a prática do crime de tráfico de entorpecentes, sendo que o Juízo monocrático oportunizou a apresentação de defesa preliminar e, posteriormente, abriu prazo para a manifestação ministerial, recebendo, de pronto a inicial acusatória, sem realizar previamente o interrogatório do réu.

II. Com a modificação do procedimento penal para a apuração dos crimes que envolvem substâncias entorpecentes, a instrução criminal deve ser realizada nos moldes estabelecidos pela nova lei.

III. A teor do art. 38 da Lei n.º 10.409/2002, há necessidade de realização de interrogatório do acusado, a fim de lhe proporcionar a apresentação de defesa, antes do recebimento da denúncia.

IV. É prescindível a comprovação de prejuízos para justificar a anulação do processo, tendo em vista a dificuldade de demonstrá-los. Precedentes do STF.

V. Deve ser anulado o processo desde o recebimento da denúncia, inclusive, a fim de ser realizado o interrogatório do paciente, respeitando-se o procedimento estabelecido na Lei n.º 10.409/2002, com a conseqüente expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outros motivos não estiver preso.

VI. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.

(STJ/DJU de 13/03/2006, pág. 347)

Nesta decisão posta em destaque, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Gilson Dipp, considerou que a inobservância do procedimento da Lei n.º 10.409/02, com a ausência de interrogatório do réu antes do recebimento da denúncia, é causa de nulidade absoluta, sendo prescindível a demonstração de prejuízo.

Consta do voto do Relator:

O Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp (Relator):

Trata-se de habeas corpus contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, que denegou a ordem anteriormente impetrada em favor de Francisco Félix Ramos, visando à anulação do processo criminal contra ele instaurado, por falta de aplicação do rito previsto na Lei n.º 10.409/2002.

O paciente foi condenado à pena de 05 anos de reclusão, em regime integralmente fechado, como incurso no art. 12, caput, da Lei n.º 6.368/76.

Em razões, reiteram-se as alegações originárias, aduzindo-se a ocorrência de constrangimento ilegal decorrente da não aplicação do rito estabelecido na Lei n.º 10.409/2002 ao procedimento instaurado em desfavor do paciente.

Sustenta-se a nulidade absoluta do feito, pois não teria sido oportunizada à defesa requerer diligências e produzir provas, tampouco sido realizado o interrogatório do réu antes do recebimento da denúncia.

Pugna-se, assim, pela anulação do processo desde o recebimento da denúncia, com a conseqüente expedição de alvará de soltura em favor do acusado.

Merece prosperar a irresignação.

Inicialmente, cumpre ressaltar que as regras de procedimento referentes aos crimes que envolvem substâncias entorpecentes, previstas no Capítulo IV da Lei n.º 10.409/2002, artigos 27 a 36, estão desprovidas de qualquer eficácia, diante do veto presidencial do seu art. 59.

Todavia, outros tratamentos merecem as regras procedimentais previstas no Capítulo V da Lei 10.409/2002, artigos 37 a 45, concernentes à instrução criminal, os quais não sofreram alteração pelo Presidente da República.

O entendimento firmado por esta Turma, por ocasião do julgamento do HC n.º 26.900/SP, é de que a Lei n.º 6.368/76 foi derrogada pela Lei n.º 10.409/2002, no tocante aos dispositivos do Capítulo V deste Diploma Legal.

No presente caso, o paciente mostra-se inconformado, pois não teria sido interrogado antes do recebimento da denúncia, ocasionando prejuízos à defesa, como a ausência de realização de diligências e de produção de provas.

O art. 38 da Lei n.º 10.409/2002 assim dispõe:

?Art. 38. Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias, contado da data da juntada do mandato aos autos ou da primeira publicação do edital de citação, e designará dia e hora para o interrogatório, que se realizará dentro dos 30 (trinta) dias seguintes, se o réu estiver solto, ou em 5 (cinco) dias, se preso.? (grifos nossos).

Verifica-se, portanto, a necessidade de realização de interrogatório do acusado, a fim de lhe proporcionar a apresentação de defesa, antes do recebimento da denúncia.

Na hipótese, entretanto, a denúncia foi oferecida em 11/2/2004 e o Juiz, em 18/2/2004, determinou a citação do réu para a apresentação de resposta à acusação (fl. 22).

Apresentada a defesa preliminar, o Magistrado abriu vista ao Ministério Público, para se manifestar (fl. 26) e, posteriormente, recebeu a inicial acusatória oferecida em desfavor do acusado (fl. 29) e designou audiência de instrução e julgamento, onde foi realizado o seu interrogatório (fls. 30/34).

Deixou, contudo, de realizar a oitiva do paciente antes do recebimento da exordial, desrespeitando o rito estabelecido na Lei n.º 10.409/2002.

De fato, com a modificação do procedimento penal para a apuração dos crimes que envolvem substâncias entorpecentes, a instrução criminal deve ser realizada nos moldes estabelecidos na nova lei, cuja inobservância configura nulidade absoluta, não obstante a existência de decisões desta Turma em sentido contrário.

Quanto à necessidade de comprovação de prejuízos para a anulação do feito, ressalta-se a dificuldade de demonstrar que a denúncia, por exemplo, não teria sido recebida caso o interrogatório do réu tivesse sido realizado.

No tocante à dificuldade de verificação de prejuízos, o Supremo Tribunal Federal posicionou-se recentemente acerca do tema:

?A Turma deferiu habeas corpus impetrado contra acórdão do STJ que, em face da ausência de demonstração de prejuízo, negara provimento a recurso ordinário interposto por denunciado pela suposta prática do crime de tráfico de drogas, por manter maconha em depósito.

Na espécie, o paciente, desde a defesa prévia, aduzira que não deveria ser adotado o rito procedimental previsto na Lei 6.368/76 e sim o procedimento preliminar disposto no art. 38 da Lei 10.409/2002 [?Art. 38. Oferecida a denúncia, o juiz, em 24 (vinte e quatro) horas, ordenará a citação do acusado para responder à acusação, por escrito, no prazo de 10 (dez) dias…?].

Salientando o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, considerou-se ser de prova impossível a demonstração de que a denúncia não teria sido recebida caso a defesa preliminar tivesse sido apresentada, não havendo, portanto, que se exigir, na espécie, a comprovação do prejuízo.

Ressaltou-se ainda que, diversamente do procedimento anterior, há, no rito da aludida Lei 10.409/2002, previsão de um interrogatório antes do recebimento da denúncia e de outro na audiência de instrução e julgamento.

HC deferido para anular o processo, desde a decisão de recebimento da denúncia, inclusive, e determinar que se observe o rito da Lei 10.409/2002. Precedente citado: RHC 85443/SP (DJU de 13.5.2005).?

(HC 84.835/SP, julgado em 09/08/2005, Rel. Min. Sepúlveda Pertence Informativo n.º 396/STF).

Em outra oportunidade, ressaltou, igualmente, a Corte Suprema, a complexidade de se evidenciar lesões à defesa do réu, apesar de tê-lo feito sob exame de argumentação diversa:

?Defesa: Defensoria Pública: ausência de intimação pessoal da pauta de julgamento do recurso em sentido estrito: nulidade absoluta: precedentes.

2. Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, 1.ª T., 11.2.92, Pertence, RTJ 140/926).

Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso.?

(HC 85.443/SP, DJ de 13/05/2005, Rel. Min. Sepúlveda Pertence).

Dessarte, é prescindível a constatação de prejuízos, salientando-se que o próprio recebimento da inicial acusatória, a princípio, constitui argumento favorável à pretensão do paciente de ver o processo anulado desde o recebimento da denúncia.

Deste modo, deve ser anulado o processo desde o recebimento da denúncia, inclusive, a fim de ser realizado o interrogatório do paciente, respeitando-se o procedimento estabelecido na Lei n.º 10.409/2002, com a conseqüente expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outros motivos não estiver preso.

Diante do exposto, concedo a ordem, nos termos da fundamentação acima.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima e Felix Fischer.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.