RECURSO EM HABEAS CORPUS N.º 17.437/SP

continua após a publicidade

Rel.: Min. Gilson Dipp

EMENTA

I. Hipótese em que o paciente foi denunciado pela suposta prática do crime de apropriação indébita de contribuições previdenciárias, pois, na qualidade de um dos gerentes de determinado conglomerado de empresas, teria deixado de recolher ao cofres do INSS as contribuições descontadas dos salários dos empregados em certos períodos.

II. O entendimento desta Corte – no sentido de que, nos crimes societários, em que a autoria nem sempre se mostra claramente comprovada, a fumaça do bom direito deve ser abrandada, não se exigindo a descrição pormenorizada da conduta de cada agente – não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer vínculo entre os denunciados e a empreitada criminosa a eles imputada.

III. O simples fato de ser gerente de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a condição de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva.

continua após a publicidade

IV. A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando inepta a denúncia.

V. Precedentes do STF.

continua após a publicidade

VI. Deve ser concedida a ordem, para determinar o trancamento da ação penal instaurada em desfavor do paciente.

VII. Ordem concedida, nos termos do voto do Relator.

(STJ/DJU do 6/6/05, pág. 347)

Decidiu o Superior Tribunal de Justiça, através de sua Quinta Turma, relator o ministro Gilson Dipp, que o entendimento pretoriano no sentido de que nos crimes societários não se exige a descrição pormenorizada da conduta de cada agente, não significa que o Ministério Público possa denunciar sem estabelecer nenhum vínculo do denunciado com os fatos.

Consta do voto do relator:

Exmo. Sr. Ministro Gilson Dipp (relator):

Trata-se de recurso ordinário interposto contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3.a Região, que denegou ordem de habeas corpus anteriormente impetrada em favor de GORDIANO PESSOA FILHO.

Na presente impetração, pretende-se o trancamento da ação penal, diante da falta de justa causa, por ilegitimidade passiva ad causam do paciente, e da inépcia da denúncia, que não teria descrito pormenorizadamente a sua conduta.

Merece prosperar a irresignação.

O representante do Ministério Público descreveu os fatos imputados ao paciente e demais acusados nos seguintes termos:

?O Ministério Publico Federal (…) vem oferecer DENÚNCIA em face de

THOMAS WILLI ENDLEIN (…)

CARLOS NELSON MARONI (…)

GORDIANO PESSOA FILHO, brasileiro, casado, gerente, 3o. Grau Completo, portador da Cédula de Identidade RG 11456370-6/SP – SP e inscrito no CPF sob o número 028.253.398-22, podendo ser encontrado no seguinte endereço:

-Rua Adolplho João Traldi, 201, Jundiaí-SP, pelos seguintes fatos:

O denunciado Thomas, na qualidade de administrador, e os denunciados Nelson e Gordiano na qualidade de gerentes, do conglomerado Conforja S.A. Conexões de Aço Ltda. (CNPJ n.º 45.658.481/0001-65) fazia parte, consciente e voluntariamente, com unidade de desígnio, descontaram, das folhas de salários dos empregados os valores referentes às contribuições previdenciárias devidas, sem contudo, recolhê-los, na época própria, aos cofres da autarquia previdenciária beneficiária.

O fato acima narrado foi constatado em trabalho de fiscalização previdenciária levado a efeito na mencionada empresa, que concluiu pelo não recolhimento dos valores referentes aos seguintes períodos, a saber: – de 01/1995 a 04/1996, originando a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito n.º 32.033.999-8, no valor de R$ 43.466,17 (quarenta e três mil, quatrocentos e sessenta e seis reais e dezessete centavos); -de 01/1995 a 04/1966, originando a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito n.º 32.034.000-7, no valor de R$ 47.162,76 (quarenta e sete mil, cento e sessenta e dois reais e setenta e seis centavos); – de 12/1995, originando a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito n.º 32.034.001-5, no valor de R$ 2.651,17 (dois mil, seiscentos e cinqüenta e um reais e dezessete centavos); – de 12/1995, originando a Notificação Fiscal de Lançamento de Débito n.º 32.034.002-3, no valor de R$ 2.916,27 (dois mil, novecentos e dezesseis reais e vinte e sete centavos).

Por essas condutas, os denunciados incorreram nas penas do artigo 168-A c/c artigo 29 e 71, todos do Código Penal.

Em face do exposto, requer o Ministério Público Federal seja recebida a presente denúncia, para, citados, ouvidos e processados os denunciados, apresentando a defesa que entenderem necessária, sejam, ao final, condenados pelo delito anteriormente tipificado.

Requer, ademais, a oitiva das testemunhas a seguir arroladas?(fls. 22/23).

Como se observa, a denúncia em comento não individualizou minimamente a conduta delituosa atribuída ao paciente, impossibilitando o exercício do contraditório e da ampla defesa, fato que a torna inépta.

Com efeito, o exame da peça pórtica revela que o Ministério Público imputou ao paciente a conduta descrita no art. 168-A do Código Penal, sob a alegação de, simplesmente, ser ele um dos gerentes do Conglomerado Conforja S.A. Conexões de Aço Ltda, sem contudo, estabelecer qualquer liame entre tal aspecto e a omissão delituosa.

Não obstante o entendimento desta Corte no sentido de que, nos crimes societários, em que a autoria nem sempre se mostra claramente comprovada, a fumaça do bom direito deve ser abrandada, dentro do contexto fático que dispõe o Ministério Público no limiar da ação penal, no caso dos autos, impõe-se o trancamento da ação.

Embora não se exija, nas hipóteses de crimes societários, a descrição pormenorizada da conduta de cada agente, isso não significa que o órgão acusatório possa deixar de estabelecer qualquer vínculo entre os denunciados e a empreitada criminosa a eles imputada.

O simples fato de ser sócio ou gerente de empresa não autoriza a instauração de processo criminal por crimes praticados no âmbito da sociedade, se não restar comprovado, ainda que com elementos a serem aprofundados no decorrer da ação penal, a mínima relação de causa e efeito entre as imputações e a condição de dirigente da empresa, sob pena de se reconhecer a responsabilidade penal objetiva.

A inexistência absoluta de elementos hábeis a descrever a relação entre os fatos delituosos e a autoria ofende o princípio constitucional da ampla defesa, tornando inepta a denúncia.

Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal proferiu os seguintes julgados:

?HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL TRIBUTÁRIO. DENÚNCIA GENÉRICA. RESPONSABILIDADE PENAL OBJETIVA. INÉPCIA.

Nos crimes contra a ordem tributária a ação penal é pública. Quando se trata de crime societário, a denúncia não pode ser genérica. Ela deve estabelecer o vínculo do administrador ao ato ilícito que lhe está sendo imputado. É necessário que descreva, de forma direta e objetiva, a ação ou omissão da paciente. Do contrário, ofende os requisitos do CPP, art. 41 e os Tratados Internacionais sobre o tema. Igualmente, os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.

Denúncia que imputa co-responsabilidade e não descreve a responsabilidade de cada agente, é inepta.

O princípio da responsabilidade penal adotado pelo sistema jurídico brasileiro é o pessoal (subjetivo).

A autorização pretoriana de denúncia genérica para os crimes de autoria coletiva não pode servir de escudo retórico para a não descrição mínima da participação de cada agente na conduta delitiva. Uma coisa é a desnecessidade de pormenorizar. Outra, é a ausência absoluta de vínculo do fato descrito com a pessoa do denunciado.

Habeas deferido.?

(HC 80549/SP, Rel. Min. NELSON JOBIM, DJ de 24/08/01)

?HABEAS CORPUS. CRIME SOCIETÁRIO. DENÚNCIA GENÉRICA. ALEGAÇÃO DE QUE A INICIAL ACUSATÓRIA NÃO ATENDERIA O DISPOSTO NO ART. 41 DO CPP, BEM COMO DE NÃO PARTICIPAREM OS PACIENTES DA ADMINISTRAÇÃO DA EMPRESA.

Reiterada a jurisprudência do STF de que, ?nos crimes societários, não se faz indispensável a individualização da conduta de cada indiciado, discriminação essa que será objeto da prova a ser feita na ação penal? (HC 65.369, Rel. Min. Moreira Alves). Precedentes.

Tal entendimento vem sendo abrandado, havendo decisões no sentido de exigir-se, na denúncia, a descrição mínima da participação do acusado, a fim de permitir-lhe o conhecimento do que de fato lhe está sendo imputado e, assim, garantir o pleno exercício de seu direito de defesa (cf. os HCs 80.219 e 80.549).

Mesmo essa última orientação ? que convence o relator ? não dispensa o exame da validade da denúncia sob a ótica de cada processo.

Patente, no caso, que a peça acusatória preenche os requisitos minimamente necessários a dar início à persecução penal, portando consigo elementos suficientes para que os acusados conheçam os fatos que lhes estão sendo imputados e possam deles se defender.

Ausência de justa causa não caracterizada, na medida em que os próprios documentos juntados pelos impetrantes desmentem a alegação de que os pacientes não participavam da administração da empresa, à época dos supostos delitos.

Habeas corpus indeferido.?

(HC 83369/RS, Rel. Min. CARLOS BRITTO, DJ de 28/11/2003)

Portanto, deve ser concedida a ordem, para determinar o trancamento da ação penal n.º 1999.03.99.026625-9, em curso perante o Juízo da 2.ª Vara Federal da Circunscrição de São Bernardo do Campo, em relação ao paciente GORDIANO PESSOA FILHO.

Diante do exposto, concedo a ordem, nos termos da fundamentação acima.

É como voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Laurita Vaz, Arnaldo Esteves Lima, José Arnaldo da Fonseca e Felix Fischer.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.