Crimes hediondos. Estupro. Direito à progressão de regime.

EMENTA

1. As penas devem visar à reeducação do condenado. A história da humanidade teve, tem e terá compromisso com a reeducação e com a reinserção social do condenado. Se fosse doutro modo, a pena estatal estaria fadada ao insucesso.

2. Já há muito tempo que o ordenamento jurídico brasileiro consagrou princípios como o da igualdade de todos perante a lei e o da individualização da pena. O da individualização convive conosco desde o Código de 1830.

3. É disposição eminentemente proibitiva e eminentemente excepcional a lei dos crimes denominados hediondos; portanto, proposição prescritiva de interpretação/exegese estrita.

4. Em bom momento e em louvável procedimento, o legislador de 1984 editou proposição segundo a qual ?a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso?.

5. Juridicamente possível, assim, a adoção, em casos que tais, da forma progressiva. Ordem de habeas corpus concedida para assegurar ao paciente possa ele ser transferido para regime menos rigoroso.

(STJ/DJU de 03/10/05, pág. 337)

Decidiu a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Nilson Naves pelo cabimento da progressão de regime na execução das penas oriundas de condenações por crime hediondo. Votaram pela progressão o Ministro Relator e o Ministro Paulo Medina, enquanto que, os ministros Hamilton Carvalhido e Hélio Quagilia Barbosa, votaram contra a progressão. Já o Ministro Paulo Gallotti votou no sentido de ser agendado o julgamento definitivo do Supremo Tribunal Federal do ?Habeas Corpus? n.º 82.959.

Consta do voto vencedor:

O Exmo. Sr. Ministro Nilson Naves (Relator): Entre nós e noutros lugares, ontem e hoje, houve, e sempre, preocupação com o aspecto da pena privativa de liberdade relativo à ressocialização do apenado, preocupação que tem a ver, claro é, com a efetividade desse aspecto. Todavia há, e já houve, maus momentos. Há maus momentos legislativos aqui e ali, um desses foi o da lei que dispõe sobre os denominados crimes hediondos, lei proveniente de um desses tristes momentos da dogmática penal. O meu discurso não bate com as concepções legislativas, não bate porque, respeitosamente, a lei foi um passo atrás, bem atrás, e o Direito (como ciência), mormente o Penal (a moderna dogmática), está à frente, estamos bem à frente. À pergunta a propósito do sentido da pena estatal (observem isto: quais os seus limites, qual a legitimação do poder estatal) o alemão Roxin responde dizendo que não podemos nos ?contentar com as respostas do passado, visto que a situação histórico-espiritual, constitucional e social do presente exige que se penetre intelectualmente num complexo com várias facetas?.

Dos fins imediatos da pena, a saber, o de intimidar, o de corrigir (o da reabilitação ou ressocialização) e, por que não, o de impossibilitar, temporariamente, a prática de outros crimes, filósofos e penalistas oitocentistas e novecentistas, entre os quais Beccaria (1738 – 1794), Carmignani (1768 -1847) e Feuerbach (1775 – 1833), conquanto tenham liderado movimentos tendentes a humanizar o sistema penal (num momento de situações de violação, opressão e iniqüidade quanto a espécies de pena e quanto ao cumprimento), colocaram-se, entretanto, relativamente aos fins imediatos da pena, ao lado do primeiro daqueles fins, isso porque, para eles, não tinha a sanção penal outro efeito além do poder de intimidar, de coagir psicologicamente o autor do crime.

Kant (1724 – 1804) tinha a pena como imperativo categórico exigência de justiça absoluta, retributiva, medida pelo talião (?vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé?, Deuteronômio 19:21). Em seu ?Dicionário?, escreveu Caygill que, (I) para Kant, a punição havia de ser ?infligida para um crime e não como um meio para algum outro fim? (por exemplo, desencorajar outros, ou reabilitar); (II) que a tese retributiva de Kant foi desenvolvida por Hegel; (III) que a tese kantiana foi recentemente eclipsada por argumentos ?que sublinham as finalidades de dissuassão e reabilitação servidas pela punição?. Entretanto, completou Caygill, a partir da década de 80, ?registrou-se um interesse renovado pelas filosofias retributivas de punição? (J. Zahar, 2000, págs. 212/213).

Todavia leia-se, ao lado de outros existentes instrumentos legislativos, a Constituição da Itália, com vigência a partir de 1948, nesta passagem do seu art. 27: ?As penas não podem comportar tratamentos contrários ao senso de humanidade e devem visar à reeducação do condenado.? De semelhante feitio, a Constituição da Espanha de 1978, art. 25, número 2: ?Las penas privativas de libertad y las medidas de seguridad estarán orientadas hacia la reeducación y reinserción social y no podrán consistir em trabajos forzados…? Analogicamente, o Parlamento Europeu vem recomendando, a propósito da adoção de política penal e de política de execução penal, que os Estados-Membros acolham medidas relativas à reeducação do condenado, sua instrução, reabilitação e reinserção social e profissional. Vem, ainda, recomendando maior aplicação das denominadas sanções alternativas em substituição à encarceração.

Fomos aplaudidos, ainda no Império, em virtude do Código de 1830, ?obra legislativa?, escreveu Aníbal Bruno, ?realmente honrosa para a cultura jurídica nacional, como expressão avançada do pensamento penalista no seu tempo?; talvez não tenhamos sido aplaudidos com o Código de 1890, mas não deixou ele, como também observou Bruno, de se apresentar ?como obra de estrutura geral avançada?. Progredimos, é claro, com o Código de 1940, entre outros pontos, com a instituição da execução da pena pelo sistema progressivo: ?… de modo que a pena imposta, além do seu caráter aflitivo (ou retributivo), deve ter o fim de corrigir, de readaptar o condenado? (Exposição, n.º 31).

Se se lhe nega o caráter de correção, de readaptação do condenado, a pena estatal privativa de liberdade se desfigura, deslegitima-se até, e ao Estado, então, faltariam meios que a justificassem legítima e legalmente; entre nós, por exemplo, ao que eu creio, faltam ao Estado brasileiro meios legítimos que justifiquem o discrímen relativamente ao cumprimento dessa pena, visto que, quando a lei estabelece o seu cumprimento fazendo discriminação, a essa pena se está negando o caráter de readaptação, e aí como ficam os princípios da igualdade de todos perante a lei e da individualização da pena? Princípios que conosco estão convivendo há bastante tempo (vejam que o da individualização convive conosco desde o Código de 1830).

Indo de um cabo a outro da vasta história penal, podemos verificar que, no cabo mais recente, a história geral da humanidade acabou assumindo fiel compromisso com a reeducação do condenado e com sua reinserção social (ressocialização), e a nossa história, como vimos de ver, não só seguiu os acontecimentos vindos de fora como ousou lá fora a dar exemplo, marcando a nossa presença, digamos, com o Código de 1830, digamos mais, com as recentes Leis n.ºs 7.209 e 7.210, ambas de 11.7.84, que estabelecem os regimes de cumprimento da pena privativa de liberdade, daí rezar a Lei de Execução Penal, no seu art. 1.º, que a execução ?tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado?. Eis passagem da sua Exposição de Motivos: ?Sem questionar profundamente a grande temática das finalidades da pena, curva-se o Projeto na esteira das concepções menos sujeitas à polêmica doutrinária, ao princípio de que as penas e as medidas de segurança devem realizar a proteção dos bens jurídicos e a reincorporação do autor à comunidade.?

Infelizmente, a lei sobre crimes hediondos terminou por fazer pouco caso de alguns princípios, talvez tenha mesmo o legislador procedido de caso pensado, mas, ao ver de uma plêiade de juristas, também a meu ver, tal procedimento foi de encontro a princípios benéficos que vigem desde os tempos mais remotos (igualdade de todos, individualização da pena, reabilitação, etc.). Ora, à Lei n.º 8.072, de 25.7.90, só lhe faltou mesmo a criação da figura do ?abominável réu?, aquela figura constante da sentença de 19.4.1792 que condenou José da Silva Xavier à forca a fim de que nela morresse (morte natural) para sempre.

De tão ilegítima, de tão ilegal, de tão insensata, de tão chocante e de tão inconstitucional que é em algumas de suas disposições, a Lei n.º 8.072, quando escapa da incompatibilidade entre normas infraconstitucionais e constitucionais, é um diploma que só pode ser visto como aqueles de interpretação estrita, tal como são de interpretação estrita, na feliz lembrança de Maximiliano, ?as disposições que restringem a liberdade humana?.

Apropriada, assim e portanto, a transcrição de um trecho das ?Memórias da Casa dos Mortos?, de Dostoiévski. Ei-la: ?O presídio e os trabalhos forçados não fazem mais do que fomentar o ódio, a sede de prazeres proibidos e uma terrível leviandade de espírito no presidiário. Estou convencido de que, com o famoso sistema celular, apenas se obtêm fins falsos, enganosos, aparentes. Esse sistema rouba ao homem a sua energia física, excita-lhe a alma, debilita-lha, intimida-lha, e depois apresenta-nos uma múmia moralmente seca, um meio louco, como obra da correção e do arrependimento.? Que espécie de correção, hem? Dostoiévski saiu do presídio em 1854, e as ?Memórias? vêm a lume em 1860; de lá para cá, é certo, presídio não mudou tanto. Essa constatação, no entanto, não nos há de desanimar, aliás, penso eu, há de levar-nos, em primeiro lugar, a pregar a sua total reforma, em segundo lugar, a reconhecer o caráter de correção da pena.

Ora, tudo isso que escrevi, eu o escrevi para o HC-34.652 (DJ de 1.º.2.05), bem como para outros casos, e, ao que cuido, tem aplicação ao presente feito, guardadas algumas proporções, é verdade.

2. Juridicamente, é possível se reconheça, aqui e agora, a progressão, porquanto diz a lei própria, e bem pertinente, a Lei n.º 7.210/84, que ?a pena privativa de liberdade será executada em forma progressiva com a transferência para regime menos rigoroso? (art. 112). Isso também é o que reza a interpretação (ou exegese) estrita a que há de ser dada às normas dos denominados crimes hediondos. Confira-se o que dispôs a Lei n.º 9.455/97 a propósito dos crimes de tortura (§ 7.º do art. 1.º): ?O condenado por crime previsto nesta Lei, salvo a hipótese do § 2.º, iniciará o cumprimento da pena em regime fechado.?

3. Voto, pois, pela concessão da ordem a fim de assegurar ao paciente o que está escrito nos arts. 33, § 2.º, do Cód. Penal e 112 da Lei 7.210. Em outras palavras, concedo a ordem a fim de assegurar ao paciente possa ele ser transferido para regime menos rigoroso.

Decisão por maioria, votando com o Relator o Ministro Paulo Medina.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.