HABEAS CORPUS N.º 29.646/SP

REL.: MIN. LAURITA VAZ

EMENTA

1. Pelo que se depreende da leitura da exordial acusatória e demais documentos que a instruem, ao contrário do que sustenta o Impetrante, não se evidencia, estreme de dúvidas, a alegada inocência do acusado.

2. Com a ressalva do ponto de vista da Relatora, não subsiste a alegação de nulidade decorrente da ausência de contraditório no inquérito judicial instaurado para apuração de possíveis crimes falimentares, porquanto, consoante a jurisprudência das Cortes Superiores, o procedimento inquisitório constitui-se em peça meramente informativa, razão pela qual eventuais irregularidades nessa fase não tem o condão de macular a futura ação penal.

3. Mostra-se nula a decisão que recebeu a denúncia, na medida em que se mostrou desprovida de qualquer fundamentação. Aplicação da Súmula n.º 564 do STF.

4. Ordem concedida para anular o processo, apenas com relação ao ora Paciente, a partir da decisão de recebimento da denúncia, sem prejuízo de que outra venha a ser proferida no mesmo sentido, desde que seja adotada razoável fundamentação.

(STJ/DJU de 24/5/04, pág. 304)

Duas questões são tratadas neste julgado da Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, relatora a ministra Laurita Vaz. A primeira, diz com a necessidade ou não de ser observado o contraditório no inquérito judicial da falência, prevalecendo, com ressalva do ponto de vista da relatora, o entendimento que a ausência do contraditório não é causa de nulidade. A segunda, no sentido de que é nulo o despacho de recebimento da denúncia quando despido de mínima fundamentação.

Consta do voto da relatora:

Exma. Sra. Ministra Laurita Vaz (Relatora):

A insurgência merece parcial acolhida.

No que se refere à argüida ausência de justa causa para a instauração da ação penal, o argumento não encontra respaldo nas peças que instruem o mandamus.

Colhe-se da denúncia o seguinte excerto, in verbis:

“Consta ainda que, cientes da total insolvência da empresa, em menos de três meses da nova administração, os denunciados contaram com o auxílio de Aldo antônio Bandieri, advogado que prestava assistência a todos denunciados desde aquisição das cotas sociais, que culminou por ajuizar pedido de concordata preventiva perante este Juízo, tendo prontamente providenciado cópias de outro processo de concordata e determinado à contadora da empresa que elaborasse o balanço especial nos moldes daquele, consignando dados incorretos e destoantes da realidade contábil da falida, simulando-os justamente para dar aparência de preenchimento dos requisitos exigidos para o processamento do favor legal.

Assim, com a conivência dos demais denunciados, Aldo Antônio Bandieri determinou a inserção de dados contábeis simulados no balanço especialmente elaborados para instruir o pedido judicial de moratória (cf. fls. 57/153 dos autos de falência e doc. 03 do anexo), porquanto fogem totalmente da lógica contábil de fls. 17/23 destes autos e, com isso visou dar aparência substanciosa e adequá-lo aos requisitos exigidos no inciso II do artigo 158 da Lei de Falências, ludibriando credores e a Justiça, como forma de obter o deferimento do processamento do elastério legal, do que poderia advir prejuízos aos credores, já que era notória a total impossibilidade de cumprimento.” (fls. 160/170)

Pelo que se depreende da leitura da exordial acusatória e demais documentos que a instruem, ao contrário do que sustenta o Impetrante, não se evidencia, estreme de dúvidas, a alegada inocência do acusado.

Destarte, tendo em conta que a denúncia descreve, com todos os elementos indispensáveis, a existência de crime em tese, sustentando o eventual envolvimento do Paciente com indícios suficientes para a deflagração da persecução penal, não há como, em juízo sumário e sem o devido processo legal, garantido o contraditório e a ampla defesa, inocentar o Paciente da acusação, antecipando prematuramente o mérito.

Outrossim, não subsiste a alegação de nulidade decorrente da ausência de contraditório no inquérito judicial instaurado para apuração de possíveis crimes falimentares, porquanto, consoante a jurisprudência das Cortes Superiores, o procedimento inquisitório constitui-se em peça meramente informativa, razão pela qual eventuais irregularidades nessa fase não tem o condão de macular a futura ação penal. Muito embora acatando fielmente a jurisprudência firme desta Corte e do Excelso Pretório, ressalvo, por oportuno, meu entendimento em sentido contrário, uma vez que considero distinto o inquérito feito pela instância administrativa daqueloutro realizado em juízo, onde por determinação expressa da lei deve ser oportunizada a defesa do indiciado.

A propósito:

“PROCESSO PENAL – INQUÉRITO – PEÇA MERAMENTE INFORMATIVA – CONTRADITÓRIO – INAPLICABILIDADE.

– O inquérito é um procedimento administrativo-informativo destinado a fornecer ao órgão da acusação o mínimo de elementos necessários à propositura da ação penal. Nele não se aplica o princípio processual do contraditório.

– Precedentes do STF e STJ.

– Recurso desprovido.” (RHC 10785/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI, DJ de 20/05/2002.)

“PENAL. PROCESSUAL. CRIME FALIMENTAR. INQUÉRITO JUDICIAL. NULIDADE. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE. “HABEAS CORPUS”. RECURSO.

1. O inquérito judicial, para apuração de crime falimentar, é mera peça informativa, desprovida de rito formal. Eventual vício ou defeito não contamina a Ação Penal.

2. Não se tranca Ação Penal por falta de justa causa, se baseada em denúncia que contém indícios de autoria e materialidade. As provas, em “Habeas Corpus”, devem ser incontroversas, e os fatos, convergentes.

3. Recurso a que se nega provimento.” (RHC 9104/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. EDSON VIDIGAL, DJ de 01/08/2000.)

“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. INQUÉRITO JUDICIAL. CONTRADITÓRIO. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CRIME SOCIETÁRIO. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. SUSPENSÃO DO PROCESSO (ART. 366 DO CPP, REDAÇÃO DADA PELA LEI N.$ 9.271/96). IRRETROATIVIDADE TOTAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO (ART. 89 DA LEI N.º 9.099/95). CONCURSO DE CRIMES. SÚMULA N.$ 243/STJ.

I – Eventual lapso ou vício do inquérito judicial não anula a ação penal (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).

II – Não há inépcia da denúncia que, ao imputar a prática de delito societário aos acusados, deixa de individualizar pormenorizadamente a conduta de cada um deles, mas fornece dados suficientes à admissibilidade da acusação, permitindo a adequação típica (Precedentes).

III – Para a fundamentação, exigida para o recebimento da denúncia em crimes falimentares (art. 109, § 2.º do Decreto-Lei n.º 7.661/45), basta a indicação de que os fatos narrados na exordial guardam relação com o inquérito judicial e que, em tese, configurem crime.

IV – Eventual erro na imputação legal pode ser corrigido no momento da sentença ex vi art. 383 do CPP, sem causar prejuízo à ampla defesa e ao contraditório, pois os réus se defendem dos fatos descritos na denúncia.

[…]

Recurso desprovido.” (RHC 11088/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 20/08/2001.)

Contudo, assiste razão ao Impetrante ao indicar a nulidade da decisão que recebeu a denúncia, na medida em que se mostrou desprovida de qualquer fundamentação.

De fato, eis o despacho do Juiz de primeiro grau, litteris:

“D.R. e A., recebo a denúncia oferecida contra GUILHERME DA COSTA MAZZUTTI, JOSÉ LUIZ LOPES, FLÁVIO LOPES e ALDO ANTÔNIO BANDIERI, determinando sejam eles cotados dos termos da ação penal e intimados para comparecer em juízo no dia 24 de março de 2.003, às 13:00 horas, a fim de ser devidamente interrogados.” (fl. 242)

Nesse contexto, incide sobre a espécie o enunciado da Súmula n.º 564 do STF, in verbis:

“A ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória.”

No mesmo diapasão, o seguinte precedente desta Corte:

“PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. INQUÉRITO JUDICIAL. CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. INÉPCIA DA DENÚNCIA. CRIME SOCIETÁRIO. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS CONDUTAS. DESNECESSIDADE. DECISÃO DE RECEBIMENTO DA DENÚNCIA. AUSÊNCIA DE QUALQUER FUNDAMENTAÇÃO.

I – O trancamento de ação por falta de justa causa somente é viável desde que se comprove, inequivocamente, hipóteses, v.g., como a atipicidade da conduta, a incidência de causa de extinção da punibilidade ou ausência de indícios de autoria ou de prova sobre a materialidade do delito.

II – A ausência de justa causa só pode ser reconhecida se perceptível de imediato com dispensa ao minucioso cotejo do material cognitivo. Se é discutível a caracterização de eventual ilícito criminal, não há que se trancar a ação penal por ausência de justa causa.

III – Eventual lapso ou vício do inquérito judicial não anula a ação penal (Precedentes do Pretório Excelso e do STJ).

[…]

V – Esta Corte Superior tem entendido que, nos crimes falimentares, a decisão que recebe a denúncia, por ser providência de natureza interlocutória simples e mero juízo de admissibilidade de acusação, não necessita de fundamentação aprofundada, basta a indicação de que os fatos narrados na exordial guardam relação com o inquérito judicial e que, em tese, configurem crime. Não havendo, entretanto, qualquer fundamentação, ainda que sucinta, incide na espécie o enunciado da Súmula 564/STF.

Recurso parcialmente provido tão somente para anular o processo a partir do recebimento da denúncia.

Prejudicado o HC n.º 21436/SP, substitutivo deste recurso ordinário.” (RHC 12699/SP, 5.ª Turma, Rel. Min. FELIX FISCHER, DJ de 10/03/2003; sublinhei.)

Ante o exposto, em consonância com o parecer ministerial, CONCEDO a ordem para anular o processo, apenas com relação ao ora Paciente, a partir da decisão de recebimento da denúncia, sem prejuízo de que outra venha a ser proferida no mesmo sentido, desde que seja adotada razoável fundamentação.

É o voto.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros José Arnaldo da Fonseca, Felix Fischer, Gilson Dipp e Jorge Scartezzini.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.

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