Criança e adolescente. Habeas corpus…

Criança e adolescente. Habeas corpus . Audiência de apresentação. Defesa técnica. Prescindibilidade. Constrangimento. Reconhecimento.

HABEAS CORPUS Nº 67.826 SP
Rel.: Min. Maria Thereza De Assis Moura
EMENTA

1. A remissão, nos moldes dos arts. 126 e ss. do ECA, implica a submissão a medida sócio educativa sem processo. Tal providência, com significativos efeitos na esfera pessoal do adolescente, deve ser imantada pelo devido processo legal. Dada a carga sancionatória da medida possivelmente assumida, é imperioso que o adolescente se faça acompanhar por advogado, visto que a defesa técnica, apanágio da ampla defesa, é irrenunciável.

2. Ordem concedida para anular o processo e, via de consequência, reconhecer a prescrição do ato infracional imputado à paciente.
(STJ/DJe de 1/7/09)

Decidiu a Sexta turma do Superior tribunal de Justiça, por unanimidade de votos, relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura que dada a carga sancionatória (medida sócio-educativa sem processo), com reflexo na esfera pessoal do adolescente, deve ser imantada pelo devido processo legal. É imperioso, pois, que o adolescente se faça acompanhar por advogado, visto que a defesa técnica, apanágio da ampla defesa, é irrenunciável.

Ordem concedida para anular o processo.

Votaram com a Ministra Relatora os Ministros Og Fermandes, Celso Limongi (Desembargador convocado do TJ/SP) e Paulo Gallotti.
Consta do voto da Relatora:

Ministra Maria Thereza De Assis Moura (Relatora):

A questão trazida a deslinde neste writ diz com a necessidade de assistência de advogado a adolescente na audiência de apresentação do art. 126 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A paciente em tese teria praticado ato infracional análogo ao delito de injúria, visto que teria desferido invectivas contra sua sogra.

São alinhados contrariamente à necessidade da presença de advogado em tal ato processual os seguintes argumentos:

a) Nos arts. 126 e ss. não há referência à presença do advogado:

Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

Art. 128. A medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público.

b) O Ministério Público ouviria diretamente o adolescente de maneira informal :

Art. 179. Apresentado o adolescente, o representante do Ministério Público, no mesmo dia e à vista do auto de apreensão, boletim de ocorrência ou relatório policial, devidamente autuados pelo cartório judicial e com informação sobre os antecedentes do adolescente, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas.

Parágrafo único. Em caso de não apresentação, o representante do Ministério Público notificará os pais ou responsável para apresentação do adolescente, podendo requisitar o concurso das polícias civil e militar.

Art. 180. Adotadas as providências a que alude o artigo anterior, o representante do Ministério Público poderá:

I – promover o arquivamento dos autos;
II – conceder a remissão;
III – representar à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa.

c) Está-se a tratar de procedimento tendente a contribuir para a formação do adolescente, revelando-se como providência de jurisdição voluntária, mormente porque não se cuida de ato infracional considerado grave, sendo prescindível, assim, a presença do advogado:
Art. 186. Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado.

§ 1.º Se a autoridade judiciária entender adequada a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão.
§ 2.º Sendo o fato grave, passível de aplicação de medida de internação ou colocação em regime de semi-liberdade, a autoridade judiciária, verificando que o adolescente não possui advogado constituído, nomeará defensor, designando, desde logo, audiência em continuação, podendo determinar a realização de diligências e estudo do caso.

§ 3.º O advogado constituído ou o defensor nomeado, no prazo de três dias contado da audiência de apresentação, oferecerá defesa prévia e rol de testemunhas.

§ 4.º Na audiência em continuação, ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, cumpridas as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, será dada a palavra ao representante do Ministério Público e ao defensor, sucessivamente, pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério da autoridade judiciária, que em seguida proferirá decisão. (destaquei).

De fato, não são poucos os argumentos contrários à imprescindibilidade do advogado no seio do procedimento em testilha.

Todavia, penso que o próprio texto do Estatuto da Criança e do Adolescente fornece subsídios para se encontrar solução diversa daquela albergada pelas instâncias inferiores. Senão vejamos.

No Capítulo III do Título III estatuiu-se:

Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:

I – pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente;
II – igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
III – defesa técnica por advogado;
IV – assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, na forma da lei;
V – direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
VI – direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento. (destaquei) Já no Capítulo I do Título IV determinou-se:
Art. 141. É garantido o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário, por qualquer de seus órgãos.
§ 1.º A assistência judiciária gratuita será prestada aos que dela necessitarem, através de defensor público ou advogado nomeado.
§ 2.º As ações judiciais da competência da Justiça da Infância e da Juventude são isentas de custas e emolumentos, ressalvada a hipótese de litigância de má-fé. (destaquei).
Acredito que é importante ter presente que as consequências da audiência em foco são sensíveis. Há, destaca-se, a possibilidade de aplicação, como no caso, de sanção análoga à pena de prestação de serviços à comunidade.
Logo, é imperioso trazer a contexto a seguinte garantia constitucional, inserta no art. 5.º:
LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal
A generosa cláusula do due process of law abarca, é cediço, a ampla defesa, cuja cogência constitucional decorre do seguinte mandamento também do art. 5.º do Texto Maior:
LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

Assim, tem-se que a preliminar audiência de remissão, nos moldes do art. 179 do ECA, implica possível constrição de direitos, logo, submete-se aos cânones do devido processo legal. Portanto, é de se assegurar a ampla defesa, a qual pressupõe, em uma de suas vertentes, a defesa técnica.

Lembre-se, a propósito, a seguinte lição de ANTONIO SCARANCE FERNANDES:

A defesa técnica, para ser ampla como exige o texto constitucional, apresenta-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva. Por outro lado, além de ser garantia, a defesa técnica é também direito e, assim, pode o acusado escolher defensor de sua confiança. (…)

Não se pode imaginar defesa ampla sem defesa técnica, essencial para se garantir a paridade de armas. (Processo penal constitucional . 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 296).

In casu, destacou-se que tanto a adolescente como sua genitora concordaram com a imediata aplicação da medida sócio educativa sem processo.

Acerca do caráter indeclinável da defesa técnica sublinhou o nobre professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo:
Além de a defesa ser necessária, é indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar. O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa. (Op. cit., p. 297).

No mesmo sentido: AURY LOPES JÚNIOR, Direito Processual Penal e sua conformidade constitucional . 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: 2008, v. I, p. 189.

Neste passo, é cabível trazer a colação o seguinte julgado em que a necessidade da presença do advogado é registrada. No precedente, em que também há aplicação de medida de prestação de serviço à comunidade, assentou-se:

O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao regular a apuração processual de ato infracional atribuível aos menores, dispõe, claramente, sobre a necessidade da realização da audiência de apresentação do infrator, o qual, observados os princípios do contraditório e da ampla defesa, será assistido por defensor, particular ou público, in verbis :

“Art. 111. São asseguradas ao adolescente, entre outras, as seguintes garantias:

I – pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, mediante citação ou meio equivalente;
II – igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa;
III – defesa técnica por advogado;
IV – assistência judiciária gratuita e integral aos
necessitados, na forma da lei;
V – direito de ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente;
VI – direito de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento”. (grifei)
Assim, suprimida a audiência de apresentação e oitiva do adolescente, deixou o juízo processante de observar o princípio do devido processo legal, pois não foi oportunizado ao menor defender-se do fato que lhe foi atribuído. Na hipótese, o paciente somente poderia ter exercido o seu direito de defesa na instrução probatória, a qual não ocorreu, violando-se o princípio do contraditório.
Outrossim, consoante se verifica, o paciente foi processado e julgado sem a presença de defensor, não tendo lhe sido assegurado, por evidente, o direito à ampla defesa. Na ausência de patrono constituído, o magistrado deveria ter nomeado defensor ao menor infrator, à luz do disposto no art. 111, do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nesse sentido, confira-se:

“Ementa: CRIMINAL. HC. ECA. DESACATO. DESOBEDIÊNCIA. CONTRAVENÇÕES PENAIS. OFENSA AO DEVIDO PROCESSO LEGAL E À AMPLA DEFESA. SUPRESSÃO DE ETAPAS DO PROCESSAMENTO. NULIDADE VERIFICADA. AUSÊNCIA DE DEFENSOR. CERCEAMENTO DE DEFESA. INADEQUAÇÃO DA INTERNAÇÃO-SANÇÃO. PLEITO PREJUDICADO. ORDEM CONCEDIDA.

Hipótese na qual o Magistrado de 1.ª grau de jurisdição, ao receber a representação ofertada pelo Órgão ministerial e diante da certidão de concordância da adolescente e de sua genitora no tocante à inicial e à medida sócio-educativa sugerida, julgou-a de imediato procedente.

Constatando-se a supressão de diversas etapas do processamento, correta a alegação de ofensa ao princípio do devido processo legal.
O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser interpretado de forma sistemática, chegando-se à conclusão de que em todos os casos, independentemente do ato infracional praticado ou da medida sócio-educativa porventura aplicável, a nomeação de defensor ao menor é absolutamente necessária.

O direito de defesa é consagrado na Constituição Federal e a tutela do direito de impugnar acusação de eventual prática de delitos ou, como ocorre no presente caso, de ato infracional, interessa, também, ao Estado, na medida em que se procura esclarecer os fatos em busca da verdade real.

A prerrogativa constitucional é irrenunciável, não podendo dele dispor o réu ou o representado, seu advogado, ou o Ministério Público, ainda que o acusado admita a acusação e pretenda cumprir a pena.

A instrução probatória configura um dos meios pelo qual o paciente poderia exercer seu direito de defesa, a qual não ocorreu, e a ampla defesa, como princípio constitucional que é, deve ser exercida no âmbito do devido processo legal.

Deve ser anulada a decisão que julgou procedente a representação oferecida contra a paciente, a fim de que seja procedida a prévia instrução probatória, com a observância do devido processo legal e a nomeação de defensor para assistir a adolescente.

Anulada a sentença monocrática, resta prejudicada a alegação de inadequação da imposição de internação-sanção à menor.

Ordem concedida, nos termos do voto do Relator”. (HC n.º 39.630/SP, rel. Min. GILSON DIPP, DJ de 9/5/2005)

Ante o exposto, CONCEDO a ordem para anular a sentença que julgou procedente a representação oferecida contra o paciente, a fim de que seja procedida a prévia instrução probatória, com a observância do devido processo legal e a nomeação de defensor público para assisti-lo. (HC 44526/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 8/11/2005, DJ 28/11/2005 p. 321)

Acredito, portanto, que, a bem do respeito ao devido processo legal e seu consectário, ampla defesa, é imperioso que o adolescente seja assistido por advogado em momento tão relevante, a audiência de apresentação, mormente quando lhe é aplicada medida sócio educativa.

Ante o exposto, concedo a ordem para anular o processo e, via de consequência, reconhecer a prescrição do ato infracional imputado à paciente.

É como voto.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.