Código de Defesa do Consumidor. Empresa administradora de cartão de crédito. Instituição financeira.

EMENTA

1. A empresa administradora de cartão de crédito, na linha da jurisprudência firmada na Segunda Seção (REsp n.º 450.453/RS, Relator para acórdão o Ministro Aldir Passarinho Junior, DJ de 25/2/04), é instituição financeira.

2. A relação entre a administradora de cartões de crédito e o usuário está subordinada ao Código de Defesa do Consumidor.

3. É vedada a capitalização mensal dos juros, ainda que prevista, nos contratos de cartão de crédito.

4. Recurso especial conhecido e parcialmente provido.

(STJ/DJU de 13/06/05, pág. 288)

S.S.C.T. interpôs recurso especial, com fundamento na alínea ?a? do permissivo constitucional, contra acórdão da Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, assim ementado:

?Apelação cível. Ação revisional de contrato, c/c repetição de indébito julgada improcedente. Prova pericial. Medida que não se justifica, a teor da petição inicial. Uso de cartão de crédito. Necessidade de outorga de mandato à administradora. Pagamento das faturas. Responsabilidade transferida à apelada, que ficou sujeita aos juros bancários, com seus respectivos encargos. Empréstimo em dinheiro. Questão não submetida ao Código de Defesa do Consumidor. art. 192, § 3.º, da Constituição Federal. Norma que depende de regulamentação. Decreto N.º 22.626/33. Inaplicabilidade ao sistema financeiro nacional. Sentença correta. Desprovimento do recurso. Decisão unânime? (fl. 148).

Opostos embargos de declaração, foram rejeitados.

Aduz violação dos artigos 1.º e 4.º do Decreto n.º 22.626/33; 6.º, 51, inciso IV, e 54 da Lei n.º 8.078/90, porque a administradora de cartão de crédito não integra o Sistema Financeiro Nacional, sendo, portanto, vedada a cobrança da capitalização mensal e de juros acima do limite de 12% ao ano. Esclarece, ainda, que o Código de Defesa do Consumidor se aplica ao presente contrato.

O recurso especial veio a ser conhecido e provido, pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, Relator o Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, com o seguinte voto condutor:

O que se tem de examinar, concretamente, é se o Código de Defesa do Consumidor e o Decreto n.º 22.626/33 incidem no caso. O julgado está posto, portanto, no plano infraconstitucional, como, expressamente, asseriu o Tribunal de origem ao julgar os embargos de declaração: ?(…) não cabe a invocação das disposições do Código de Defesa do Consumidor ou da própria Constituição para solução do litígio? (fl. 156). E ambos os temas foram prequestionados devidamente, considerando que sobre eles se manifestou, de modo claro, o acórdão recorrido. Não há, portanto, na minha avaliação, empeço a que seja examinado o especial.

Dúvida não há sobre a incidência do Código de Defesa do Consumidor em tais casos, presente mesmo um serviço prestado pela administradora ao usuário do seu cartão (REsp n.º 71.578/RS, Relator o Ministro Nilson Naves, DJ de 3/2/97). Tem razão, portanto, a recorrente neste ponto.

Também tem razão a recorrente, na minha compreensão, quanto ao fato de não ser a administradora de cartão de crédito uma instituição financeira, afirmação, em tese, não negada pelo acórdão recorrido. O que se vai examinar, portanto, é a incidência da Lei de Usura, que o acórdão recorrido entendeu não ser aplicável.

A pergunta que se deve fazer é: qual a operação embutida em contrato para o uso de cartão de crédito? A resposta não é simples.

Na verdade, com a emissão do cartão de crédito, o portador desenvolve duas relações jurídicas distintas: uma, quando efetua a sua compra, com o vendedor da mercadoria ou fornecedor do serviço; outra, com a administradora do cartão de crédito.

Ensina Waldirio Bulgarelli que, de fato, ?há um contrato inominado, misto de abertura de crédito e de prestação de serviço?. E, ainda, explica a situação no país:

?No Brasil, intervém no contrato-tipo não o banco diretamente, mas, a chamada empresa emissora. Trata-se em regra de uma sociedade juridicamente autônoma, embora ligada e dependente, em termos de grupo, direta ou indiretamente, aos bancos que patrocinam o cartão. Tal fato cria uma nova posição, na situação jurídica que se estabelece entre os participantes do cartão de crédito. A sociedade que emite o cartão em favor do titular que dele poderá se utilizar junto à rede de fornecedores, presa por um contrato com a sociedade emissora; o titular autoriza ainda a sociedade emissora a contrair financiamento com os bancos, em seu nome, o que lhe permitirá saldar as contas, em prazo e condições determinadas pelos mesmos bancos.

Sem entrar no aspecto de que tal inserção de uma empresa, num negócio basicamente triangular, criando uma quarta posição, encarece os custos contrariando a tendência internacional que é justamente de barateá-los – é de ressaltar que por isso se cria uma situação privilegiada para a instituição financeira, possibilitando também um jogo curioso quando o débito não é saldado, nos prazos e nas condições fixados. É que, nesta hipótese, agindo como mandatária do titular do cartão, a empresa emissora emite nota promissória em nome do titular do cartão a favor do Banco (para ou pelo pagamento das contas), levando, via de regra, incontinenti, a protesto. Daí a inclusão da odiosa cláusula, no contrato-tipo, outorgando o titular, à empresa emissora, os poderes para não só obter financiamentos junto às instituições financeiras, mas para emitir títulos de crédito para saldar o débito, necessariamente acrescido, como é de praxe, das custas, despesas, comissões e a correção monetária.

Operação polifacética, observada angularmente, tem-se contrato de prestação de serviço entre a sociedade emissora e o titular do cartão, através do contrato-tipo, com as cláusulas impressas, redigidas por uma delas a sociedade emissora ao qual adere, sem discuti-las, o titular, portanto, contrato de adesão. Entre o titular por si, ou pela sociedade emissora como sua mandatária, e a instituição financeira, um contrato de abertura de crédito (ou de financiamento em geral, tal sejam as condições, como, por exemplo, o chamado credit revolving); entre a sociedade emissora e os fornecedores um contrato se obrigando a pagar as compras feitas pelo titular até um certo valor, e estes a aceitar o cartão e a receber o preço, nos prazos e condições fixados; entre o titular do cartão e o fornecedor, um contrato de venda ou de prestação de serviços, obedecidos os requisitos da apresentação do cartão e a assinatura da nota especial.

Entre a sociedade emissora e o titular deveria configurar-se, expressamente, a responsabilidade por fato de terceiro, ou seja assegurando ao titular a aceitação do cartão. Não é isso que ocorre, excluindo-se de qualquer responsabilidade a sociedade emissora por esse fato, através de cláusula expressa no contrato-tipo.

Desta forma, é difícil aceitar o papel da sociedade emissora, senão como um providencial intermediário em favor do fornecedor e da instituição financeira? (O cartão de crédito e suas projeções jurídicas, Revista Forense n.º 253, págs. 143 e segs.).

Já Nelson Eizerik traça o perfil do contrato como se segue:

?No caso do cartão de crédito emitido por empresa especializada na administração do cartão (e que não é instituição financeira), a praxe do mercado levou à existência de três modalidades de contratos distintos, que operam em simetria:

a) o primeiro, firmado entre a emissora do cartão e cada estabelecimento industrial e comercial componente de rede afiliada, pelo qual o estabelecimento aceita o cartão como meio de pagamento e a emissora assume a obrigação de pagar os débitos do titular do cartão contraídos com a aquisição de bens ou serviços;

b) o segundo, que tem natureza de contrato inominado, misto de prestação de serviços e de garantia de pagamento, pactuado entre a emissora e o titular do cartão; e

c) o terceiro, convencionado entre o titular do cartão e a instituição bancária responsável pela abertura de crédito, na hipótese de o titular optar pelo financiamento de suas compras, no qual a emissora figura usualmente como interveniente avalista do titular.

Os cartões emitidos por empresas especializadas normalmente não constituem cartões de crédito, propriamente ditos, mas sim cartões de compra. Em geral, tais contratos estabelecem que o pagamento das despesas realizadas pelo titular deve ser realizado, em sua totalidade, na data do vencimento, indicado no extrato das despesas.

No caso, a emissora, na realidade, não financia as compras efetuadas pelo titular do cartão. Com efeito, o titular, a seu critério, pode optar pelo pagamento das despesas na data do vencimento ou pelo seu financiamento, por uma instituição bancária, às taxas de juros vigentes no sistema financeiro. Na hipótese de financiamento, a emissora garante o pagamento, como avalista cobrando uma remuneração pela garantia prestada.

Daí o reconhecimento, em nosso sistema jurídico, de que não há, na relação obrigacional existente entre a emissora e o titular do cartão, contrato de financiamento, mas contrato misto, de prestação de serviços e de garantia do pagamento dos bens e serviços adquiridos por parte do titular? (Administração de cartão de crédito constitui atividade privativa de instituição financeira?, Revista de Direito Mercantil n.º 88, págs. 25 e segs.).

Com a emissão do cartão de crédito várias relações jurídicas podem nascer, com configurações e conseqüências jurídicas diversas. Interessa-nos, particularmente, aquelas que envolvem o titular do cartão com a emissora, quando empresa administradora de cartões de crédito, o que é o caso, embora ligada a uma determinada instituição financeira.

Vê-se pela sentença que a ação, como posto pelo acórdão recorrido, refere-se ao uso de cartão de crédito, sem o devido pagamento no prazo estipulado. O acórdão recorrido entendeu, contudo, que a usuária ?é obrigada outorgar mandato à Administradora para representá-la junto aos bancos para obter financiamento em seu nome? (fl. 149). Com isso, pretendeu o Tribunal de origem configurar uma contratação indireta de financiamento bancário em nome da usuária, com o que, se não paga, transfere o pagamento das faturas para a administradora, que se utiliza, então, do financiamento bancário, daí a não-aplicação do Decreto n.º 22.626/33. Não se trata, portanto, de financiamento bancário em que a usuária é mutuária. O que existe é o inadimplemento em razão da falta de pagamento da fatura no prazo fixado. Há, no caso, um débito decorrente de um contrato de prestação de serviços e de garantia de pagamento. Há uma impontualidade no pagamento avençado no contrato, o que gera a possibilidade da cobrança judicial. Anote-se que, neste caso, a relação jurídica é entre o titular do cartão e a emissora.

Não sendo a administradora instituição financeira, vencido o prazo e não cumprida a obrigação, ocorre a inadimplência, podendo a administradora realizar a cobrança. Mas os juros devem ser os legais, como em toda e qualquer cobrança de débito não vinculada ao mercado financeiro. Não há razão alguma para que o valor do débito inclua as taxas praticadas no mercado financeiro. Sem dúvida, a empresa administradora do cartão de crédito não é uma instituição financeira, com o que não pode praticar taxa de juros superior ao limite legal, em razão do inadimplemento do usuário.

Por outro lado, a capitalização mensal não é permitida, sabido que somente quando a legislação especial assim prescreve é que se torna possível, tal e qual nas cédulas de crédito rural, comercial ou industrial (REsp n.º 302.893/RS, Relator o Ministro Aldir Passarinho Júnior, DJ de 25/6/01).

Com essas razões, eu conheço do especial e lhe dou parcial provimento para que sejam aplicados o Código de Defesa do Consumidor e o Decreto n.º 22.626/33, refazendo-se os cálculos com tal incidência desde novembro de 1998, como pedido na inicial. Custas e honorários de 10% sobre o valor da causa pela parte vencida.

Decisão unânime, votando com o relator os ministros Nancy Andrighi e Castro Filho.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.