A jurisprudência brasileira, tanto das instâncias extraordinárias, como das ordinárias, tem sido sobremaneira rigorosa na definição e punição dos crimes de atentado violento ao pudor. Para essa jurisprudência de antiga concepção (bem anterior ao surgimento dos crimes hediondos), os afagos, carícias, apalpações, beijos e etc., exercidos contra a vontade do sujeito passivo, configuram o crime de atentado violento ao pudor, definido no art. 214 do Código Penal.

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Nesse sentido: ?O contato corporal lascivo (abraços e beijos), obtido mediante violência e ameaça a mão armada, por si só já constitui o crime do art. 214 (TJSP, RT 567/293); ?A apalpação ou beijos à força configuram o ato libidinoso punido pelo art. 214 do CP (TJRS, RT 553/400); ?Constitui violência a prática de ação rápida e inopinada, que tenha surpreendido a vítima, impedindo-lhe a defesa (RT 662/223); ?O tateio das nádegas (RT 458/302); ?Quem, com as mãos, procura alcançar as partes pudicas das vítimas, conseguindo tocar em seus seios e nas coxas (RT 397/83). Uma e outra decisão consideram esses casos como a contravenção de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da LCP).

Há, nessa interpretação, a nosso ver, manifesto equívoco.

Se apenas ocorrem ?apalpações?, ?carícias?, ?afagos?, ?beijos? e etc., ainda que contra menores, não é possível conceber tais condutas como atentado violento ao pudor, porque esse tipo penal reclama, para a sua configuração, a existência de ato de libidinagem semelhante à conjunção carnal.

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Com efeito, essa é uma das hipóteses de interpretação analógica, ou intra-legem, a qual, segundo Damásio de Jesus (?Direito Penal?, I, pág. 46), ?é permitida toda vez QUE UMA CLÁUSULA GENÉRICA SE SEGUE A UMA FÓRMULA CASUÍSTICA, devendo ENTENDER-SE QUE AQUELA SÓ COMPREENDE OS CASOS ANÁLOGOS AOS MENCIONADOS POR ESTA. Ex.: o art. 121, § 2.º, IV, comina a pena de reclusão de 12 a 30 anos se homicídio é cometido ?à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido?.

Temos aí uma fórmula casuística: ?à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação?, seguida de uma cláusula genérica: ?ou outro recurso que dificulte ou torne impossível a defesa do ofendido?.

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Assim o ?outro recurso? mencionado pelo texto só pode ser aquele que, como a ?traição?, a ?emboscada?, ou a ?dissimulação?, tenha caráter aleivoso ou insidioso.

Trata-se de uma hipótese de interpretação extensiva, em que a própria lei determina que se estenda o seu conteúdo.?

Mas, em relação ao atentado violento ao pudor, qual a diferença ? Por que é que a doutrina e a jurisprudência vêm entendendo que ato libidinoso diverso da conjunção carnal vem a ser qualquer outro ato, dela diverso, que envolva lascívia, luxúria, concupiscência?

Qual a redação do crime de atentado violento ao pudor?

Diz a lei, no art. 214:

 ?Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ATO LIBIDINOSO DIVERSO DA CONJUNÇÃO CARNAL.?

Temos então que o tipo penal contempla uma fórmula casuística conjunção carnal à qual se segue uma cláusula genérica ato libidinoso diverso dela.

Logo, segundo os princípios da hermenêutica, o ato libidinoso diverso da conjunção carnal, deve ser análogo, semelhante à conjunção carnal.

O que é conjunção carnal?

É a penetração, total ou parcial, do genital masculino no genital feminino.

O que deve ser ato libidinoso diverso da conjunção carnal, que possa caracterizar o crime de atentado violento ao pudor?

É todo aquele que, analogamente à conjunção carnal, importe em penetração do ofendido (penetração no ânus coito anal; penetração na boca coito oral, ou a introdução nessas cavidades de aparelhos).

Mas, tem de haver penetração, porque se não há conjunção carnal sem penetração, não pode haver ato libidinoso caracterizador de atentado violento ao pudor (com punição idêntica) sem que haja também penetração.

Aliás, o direito penal dos europeus, sobretudo os códigos de confecção mais recente, como os de Portugal e Espanha, já eliminaram essa antiga distinção entre estupro e atentado violento ao pudor, reunindo-os num mesmo tipo, que compreende a violação, passando os ?afagos?, ?carícias?, ?apalpações?, ?beijos?, ?abraços? e ?esfregões? para outro tipo, quase sempre denominado de ?abuso sexual?, com pena mais branda:

1. CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS (DECRETO-LEI N.º 48/95)

CAPÍTULO V

DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE E A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL

SECÇÃO I

CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL

ARTIGO 163

 (Coacção sexual)

?Quem, por meio de violência, ameaça grave ou, depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.?

ARTIGO 164

(Violação)

?1. Quem tiver cópula com mulher, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para realizar a cópula, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, ou, ainda, pelos mesmos meios, a constranger a tê-la com terceiro, é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.

2. Com a mesma pena é punido quem, nos termos previstos no número anterior, tiver coito anal com outra pessoa, ou a constranger a tê-lo com terceiro.?

ARTIGO 165

(Abuso Sexual de Pessoa Incapaz de Resistência)

?1. Quem praticar acto sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de 6 meses a 8 anos.

2. Quem, nos termos previstos no número anterior, praticar com outra pessoa cópula, ou coito anal, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.?

SECÇÃO II

Crimes contra a autodeterminação sexual

ARTIGO 172

(Abuso Sexual de Crianças)

?1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

2. Se o agente tiver cópula ou coito anal com menor de 14 anos é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.?

CÓDIGO PENAL ESPANHOL

(LEY ORGÁNICA 10/95)

TÍTULO VIII

Delitos contra la libertad sexual

CAPÍTULO PRIMERO

DE LAS AGRESIONES SEXUALES

ART. 178

?El que atentare contra la libertad sexual de outra persona, com violencia o intimidación, será castigado como culpable de agresión sexual com la pena de prisión de uno a cuatro años.?

ART. 179

?Cuando la agresión sexual consista en acceso carnal, introdución de objetos o penetración bucal o anal, la pena será de prisión de seis a doce años.?

CAPÍTULO II

DE LOS ABUSOS SEXUALES

ART. 181.

?1. El que, sin violencia o intimidación y sin que medie consentimiento, realizare actos que atenten contra la libertad sexual de outra persona, será castigado como culpable de abuso sexual com la pena de multa de doce a veinticuatro meses.

2. En todo caso, se consideran abusos sexuales no consentidos los que se ejecuten:

1.º Sobre menores de doce años.?

Assim, procedendo à interpretação analógica, as ?carícias?, ?afagos? e ?apalpações? não constituem o tipo do atentado violento ao pudor, porque não guardam nenhuma semelhança com a conjunção carnal. E, na ausência de outro tipo apropriado na nossa legislação penal (como existe nas legislações de Portugal e Espanha) somente podem ser enquadrados na contravenção da importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da LCP).

Por todas essas razões é que aplaudimos a decisão da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Paraná, no julgamento da apelação criminal n.º 269.448-8, de Guaíra, Relator o Desembargador Antônio Martelozzo, com o seguinte voto condutor:

?Apelação Criminal n.º 269.448-8, de Guaíra-PR

Rel.: Des. ANTÔNIO MARTELOZZO

EMENTA

Apelação criminal. Atentado violento ao pudor com violência presumida. Art. 214, c/c. art. 224, alínea ?a?, ambos do Código Penal. Condenação. Autoria e materialidade comprovadas. Desclassificação do crime para a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor. Art. 61 da Lei das Contravenções Penais. Agente que passa a mão no corpo da vítima quando esta se recolhia para dormir. Recurso provido. Extinção da punibilidade. Declaração de ofício da prescrição da pretensão punitiva do Estado.

VOTO

Analisando o conteúdo dos autos, a par dos argumentos trazidos a lume, tanto pela acusação, quanto pela defesa, temos que o recurso está a merecer acolhimento.

Como se viu da síntese dos fatos, o apelante foi condenado pela prática do crime de atentado violento ao pudor praticado contra sua filha/vítima L.D.B.

O crime de atentado violento ao pudor é definido pelo art. 214 do Código Penal, nos seguintes termos: ?Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal?.

Para a configuração do crime é imprescindível que o agente tenha usado de violência ou grave ameaça para constranger a vítima.

Todavia, não parece que a conduta atribuída ao acusado se enquadre naquela prevista no art. 214 do Código Penal, mas, sim, no art. 61 da Lei das Contravenções Penais, já que o ato cometido não se revela assim tão grave.

A vítima L.D.B., ao prestar declarações na fase indiciária (fls. 17/18), disse que seu pai a assediava durante a noite, a procurando em sua cama e passando a mão sobre seu corpo e que tal fato ocorreu por diversas vezes.

Em juízo (fls. 97/98), reafirma a versão acima: ?(…) no período noturno, quando todos da residência da depoente estavam dormindo, o réu e pai da depoente tentava passar a mão em diversas partes do corpo da depoente; que o réu passava a mão nos seios da vítima, na ?bunda?, na vagina e em outras partes do corpo (…)?.

A mãe da vítima, M.C.S. (fls. 20 e 99/100), não admitiu como possível a real ocorrência dos fatos que foram narrados pela vítima e só confirmados por ela própria.

Assim, tal conduta, mais se amolda à contravenção de importunação ofensiva ao pudor do que ao crime de atentado violento ao pudor, pois aquele que, sem violência ou grave ameaça, passa as mãos nas partes íntimas de uma mulher, comete apenas a contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor e não o crime de atentado violento ao pudor. Neste diapasão é o entendimento predominante da jurisprudência de nossos Tribunais.

A propósito:

?Caracteriza contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (art. 61 da LCP) o gesto de passar as mãos pelos seios ou nádegas da vítima, eis que isso, antes de caracterizar atentado violento ao pudor, que corresponde a atuar muito mais intenso e a um ataque bem mais definido, do ponto de vista da satisfação da lascívia, melhor corresponde à figura contravencional? (TJSP, rel. Des. Canguçu de Almeida, RT 730/525).

?O beijo roubado, assim como o toque superficial e fugaz, por sobre as vestes, nos seios de uma mulher, não caracterizam a prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal e sim a conduta indecorosa de importunação ofensiva ao pudor? (TJSC, rel. Des. Nilton Macedo Machado, RT 727/577).

?Aquele que encosta em mulher, ainda que de frente, para a satisfação da concupiscência, mas sem violência ou grave ameaça, comete apenas a contravenção de importunação ofensiva ao pudor e não atentado violento ao pudor? (TJSC -AC – rel. Gonçalves Santana, RT 397/84).

Insta salientar, que após a vítima ter residido por um curto espaço de tempo na casa de sua tia, esta retornou para a casa dos pais, porque passou a ter um quarto só para ela, e que não houve outros registros de ocorrências semelhantes, em relação à vítima ou a quem quer que seja, e portanto, não parecem presentes elementos indicativos de uma situação que reclame a aplicação de uma pena corporal de quase nove anos de reclusão.

Destarte, há que se desclassificar a conduta do apelante para a contravenção penal prevista no art. 61 da Lei das Contravenções Penais, que comina tão-somente a pena de multa.

Desnecessária é a fixação da pena de multa, uma vez que transcorreu prazo superior a dois anos, art. 114, inc. I, do Código Penal, entre a data dos fatos (maio de 1997 a maio de 1998) e a data do recebimento da denúncia (23/08/02 -fl. 74). Assim sendo, qualquer que seja a pena de multa fixada, não resta a menor dúvida de que estaria fulminada pela prescrição retroativa.

Pelo exposto, vota-se no sentido de dar provimento ao recurso para desclassificar a conduta do apelante para a prevista no art. 61 da Lei das Contravenções Penais e, ao mesmo tempo, declarar extinta sua punibilidade, segundo o disposto no art. 107, inc. IV, do Código Penal.

ACORDAM os Desembargadores integrantes da Segunda Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, por unanimidade de votos, em dar provimento ao recurso.

Participaram do julgamento o Senhor Desembargador Waldomiro Namur, Presidente sem voto, Desembargador Arquelau Araújo Ribas e o Juiz Convocado José Joaquim Guimarães da Costa.

Curitiba, 29 de setembro de 2005.

Antônio Martelozzo, Relator

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.