Agiotagem, crime de usura e o princípio da conservação dos negócios jurídicos

“DIREITO CIVIL. TEORIA DOS ATOS JURÍDICOS. INVALIDADES. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. NOTAS PROMISSÓRIAS. AGIOTAGEM. PRINCÍPIO DA CONSERVAÇÃO DOS ATOS E DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS REDUÇÃO DOS JUROS AOS PARÂMETROS LEGAIS COM CONSERVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO.
1.- A ordem jurídica é harmônica com os interesses individuais e do desenvolvimento econômico-social. Ela não fulmina completamente os atos que lhe são desconformes em qualquer extensão. A teoria dos negócios jurídicos, amplamente informada pelo princípio da conservação dos seus efeitos, estabelece que até mesmo as normas cogentes destinam-se a  ordenar e coordenar a prática dos atos necessários ao convívio social, respeitados os negócios jurídicos realizados. Deve-se preferir a interpretação que evita a anulação completa do ato praticado, optando-se pela sua redução e recondução aos parâmetros da legalidade.
2.- O Código Civil vigente não apenas traz uma série de regras legais inspiradas no princípio da conservação dos atos jurídicos, como ainda estabelece, cláusula geral celebrando essa mesma orientação (artigo 184) que, por sinal, já existia desde o Código anterior (artigo 153).
3.- No contrato particular de mútuo feneratício, constatada, embora a prática de usura, de rigor apenas a redução dos juros estipulados em excesso, conservando-se contudo,  parcialmente o negócio jurídico (artigos 591, do CC⁄02 e 11 do Decreto 22.626⁄33).
4.- Recurso Especial improvido.”
(STJ – REsp 1106625/PR – 3ª T. – Rel. Min. Sidnei Benetti – DJe de 9.9.11)

A íntegra do voto do Min. Relator contém os seguintes fundamentos, em suma:

“VOTO
 
O EXMO SR. MINISTRO SIDNEI BENETI (Relator):
 

4.- MAURICIO URBANETZ opôs embargos à execução proposta NELSON LEANDRO DE SOUZA, alegando, basicamente, que as notas promissórias indicadas como títulos executivos seriam nulas. Isso porque espelhavam um mútuo celebrado entre particulares no qual estipulados juros ilegais, caracterizadores de agiotagem. (…)
7.- Em sede de recurso especial procura, como relatado, ver reconhecida a nulidade do negócio jurídico firmado com a consequente anulação das notas promissórias.
8.- A Lei da Usura (Decreto nº 22.626⁄33) em seu artigo 1º, proíbe expressamente a estipulação de juros superiores ao dobro da taxa legal. Ao tempo do Código Civil de 1916, essa taxa legal era aquela prevista no artigo 1.062 daquele diploma, de 0,5% ao mês. Conclui-se, assim, que eram tidos por usurários e, portanto, contrários à lei, os juros estipulados acima a 1% ao mês (12% ao ano).
9.- As instâncias de origem, reconhecendo a verossimilhança das alegações apresentadas pelo embargante, concluíram de forma definitiva pela existência dessa ilegalidade.
10.- Nos termos do artigo 145, II, do Código Civil de 1916 e do artigo 166, II, do Código vigente, é nulo o ato jurídico (lato sensu) quando ilícito for o seu objeto.
11.- Não se discute, nesta sede, questões de ordem processual, como a possibilidade de prosseguimento do processo de execução com base em títulos que tenham sido parcialmente desconstituídos judicialmente. Importa saber, nesta oportunidade, se a invalidação do ato jurídico que tenha um objeto ilícito é medida que se impõe de forma total e inafastável ou se, tal como decidiu o Tribunal de origem, é possível, de alguma forma, salvá-lo.
12.- De início é preciso ter presente que a ordem jurídica não é inimiga dos interesses individuais e do desenvolvimento econômico-social. Ela não fulmina completamente os atos que lhe são desconformes em qualquer extensão. A teoria dos negócios jurídicos, amplamente informada pelo princípio da conservação dos negócios jurídicos, determina que mesmo as regras cogentes existem apenas ordenar e coordenar a prática dos atos necessários ao convívio social. Por isso o ordenamento somente sanciona quando e na medida em que os valores ou interesses impregnados na norma o exijam. Não se pode esquecer que contrato é apenas a veste jurídica de uma operação econômica, pelo que sobreleva o interesse da própria coletividade na manutenção dos efeitos dos negócios jurídicos realizados com vistas à estabilidade social e segurança jurídica. Sempre que possível, portanto, deve-se evitar a anulação completa do ato praticado, reduzindo-o ou reconduzindo-o aos parâmetros da legalidade.
13.- O Código Civil, por exemplo, está impregnado de dispositivos que celebram o princípio da conservação dos atos jurídicos. Muito além de um punhado esparso e assistemático de regras inspiradas em uma mesma orientação, a preocupação com a manutenção dos atos jurídicos aproveitáveis foi encarecida pelo legislador de forma expressa e genérica ao dispor, no capítulo V do Código, intitulado ‘Da Invalidade do Negócio Jurídico’ que ‘Respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável’ (artigo 184). Essa orientação já existia, por sinal, desde o Código Civil anterior, que, em seu artigo 153, dispunha: ‘A nulidade parcial de um ato não o prejudicará na parte válida, se esta for separável.’
14.- No caso dos autos, a petição dos embargos à execução narra que o recorrente tomou o empréstimo em questão para atender necessidade premente da empresa de engenharia e consultoria de que é sócio. Nessa situação lembra-se logo do artigo 157 do Código, que estabelece como hipótese de anulabilidade do negócio jurídico a figura da lesão, assim compreendida como a assunção de obrigação manifestamente desproporcional em razão de necessidade premente ou de inexperiência. O parágrafo 2º desse mesmo dispositivo, nitidamente inspirado no princípio da conservação dos atos jurídicos, preceitua que ‘Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.’
15.- Dentre as inúmeras hipóteses concretizadoras desse princípio, merece destaque especial o instituto conhecido como ‘conversão substancial do negócio jurídico’ previsto nos artigos 169 e 170 do Código: Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo. Art. 170. Se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade.
16.- Na hipótese em testilha não há elementos para afirmar com segurança que os juros estipulados no contrato podem ser reduzidos aos patamares legais com base no instituto da conversão, sobretudo porque não se tem como apurar se o mutuante teria celebrado o negócio nesses termos.
17.- Também não é possível afirmar que o negócio deve ser preservado com base no § 2º, do artigo 157, porque não se tem notícia de que o mutuante tenha concordado com a redução do proveito. Muito pelo contrário, na impugnação aos embargos, ele pleiteou pela improcedência total dos pedidos ali formulados.
18.- Com efeito, mesmo em relação à regra do artigo 184, não se tem uma subsunção perfeita, do fato à norma, porque não é possível afirmar que o mútuo em questão teria uma parte válida e outra inválida. O valor dos juros, com efeito, é da essência da espécie contratual destacada, é elemento estruturante do contrato e não pode ser cindido em partes. ZENO VELOSO, a respeito do tema, ensina que a redução do negócio jurídico à sua parte válida não pode ocorrer quando sobressair um aspecto unitário do ato. Isto é, quando patente que as partes somente o teriam ajustado se fosse válido em seu conjunto, consequentemente não admitindo seu fracionamento. Nessas hipóteses prevalecerá o reconhecimento da nulidade de todo o negócio (VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 95). Na mesma linha, MARCOS BERNARDES DE MELLO entende que mesmo que a separação do negócio em partes seja possível objetivamente, a finalidade do negócio não pode ser desfigurada pela redução, entendendo que, nesse caso, a invalidade total será a regra (MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da validade. São Paulo: Saraiva, 2000. p. 64).
19.- Em todo caso, sem dúvida mesmo quando afastada a aplicação desses dispositivos, ainda restaria regra do artigo 591, que, de forma expressa, autoriza a redução dos juros pactuados em excesso (por particulares), independentemente do que teriam as partes convencionado se soubesses da ilegalidade que inquinava o contrato. Confira-se: Art. 591. Destinando-se o mútuo a fins econômicos, presumem-se devidos juros, os quais, sob pena de redução, não poderão exceder a taxa a que se refere o art. 406 (…).
20.- Nem se diga que o artigo 591 do Código Civil de 2002 seja inaplicável ao caso presente, porque celebrado o do negócio jurídico à época da vigência do Código anterior. O comando legal em questão é apenas a explicitação de um princípio jurídico que já existia, como visto, desde o codex passado (artigos 148 e 153, por exemplo). Não por outro motivo se admite, por exemplo, desde há muito, a revisão dos contratos de mútuo bancário para redução de encargos abusivos, como juros de mora superiores à taxa legal, correção monetária por índice não autorizado, cumulação de comissão de permanência com correção monetária etc. Nesses casos sempre se admitiu a declaração de nulidade parcial do contrato, com manutenção das partes válidas e na proporção em que eram válidas.
21.- E, para aplacar qualquer dúvida, quanto à possibilidade de redução dos juros aos patamares legais, cumpre conferir o que dispõe o artigo 11 do Decreto 22.626⁄33, curiosamente apontado violado pelo próprio recorrente. Art. 11. O contrato celebrado com infração desta lei é nulo de pleno direito, ficando assegurado ao devedor a repetição do que houver pago a mais. Ora, se ao devedor é assegurada a repetição do que houver pago a mais é porque o que foi corretamente, dentro do que autorizado pela norma, não deve ser repetido. E se não deve ser repetido é porque deve ser mantido. Se a lei tivesse imposto a anulação de todo o negócio jurídico ela teria dito que a infração aos seus termos implicaria a resolução do contrato, com restituição das partes ao estado anterior. Não foi isso, porém, o que o legislador disse. Lê-se na norma, repita-se, que será repetido, isto é, devolvido, apenas o que foi pago a maior.
22.- Ante o exposto, nega-se provimento ao Recurso Especial.

Ministro SIDNEI BENETI
Relator” (destacamos)

N o t a s

 

    A prática da usura também é definida como crime no art. 4º da Lei nº 1.521, de 26 de dezembro de 1951, da seguinte forma: “Constitui crime da mesma natureza a usura pecuniária ou real, assim se considerando: a) cobrar juros, comissões ou descontos percentuais, sobre dívidas em dinheiro superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada por moeda estrangeira; ou, ainda, emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito; b) obter, ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, de cinco mil a vinte mil cruzeiros.” O §2º desse dispositivo estabelece que, se o crime for praticado em contexto de crise econômica ou ocasionar grave dano individual à vítima, a pena deverá ser agravada.

    O §3º, por sua vez, dizia que “a estipulação de juros ou lucros usurários será nula, devendo o juiz ajustá-los à medida legal”, inclusive prevendo a restituição, com os juros legais, das quantias pagas em excesso. Esse dispositivo foi revogado pelo art. 7º da Medida Provisória nº 2.172-32, de 23 de agosto de 2001, a qual ainda determina, em seu art. 1º, que “são nulas de pleno direito as estipulações usurárias, assim consideradas as que estabeleçam: I – nos contratos civis de mútuo, taxas de juros superiores às legalmente permitidas, caso em que deverá o juiz, se requerido, ajustá-las à medida legal ou, na hipótese de já terem sido cumpridas, ordenar a restituição, em dobro, da quantia paga em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido; II – nos negócios jurídicos não disciplinados pelas legislações comercial e de defesa do consumidor, lucros ou vantagens patrimoniais excessivos, estipulados em situação de vulnerabilidade da parte, caso em que deverá o juiz, se requerido, restabelecer o equilíbrio da relação contratual, ajustando-os ao valor corrente, ou, na hipótese de cumprimento da obrigação, ordenar a restituição, em dobro, da quantia recebida em excesso, com juros legais a contar da data do pagamento indevido.”

    Sendo assim – e embora não haja notícia, no acórdão em questão, de que tenha havido a devida persecução penal por conta do crime de usura – a orientação do STJ está em consonância com a interpretação mais coerente da legislação aplicável. Desde 1951, quando se editou a lei que reprime (até hoje) a prática da cobrança de juros excessivos sem a licença necessária, dispensava-se a anulação do negócio jurídico como um todo, bastando, para a justa solução da controvérsia, o reajuste dos valores aos níveis permitidos – e ordenando-se, se possível, a restituição do que tiver sido indevidamente recebido.

 

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