Advogado. Investigação sigilosa do Ministério Público Federal. Sigilo inoponível ao patrono do suspeito ou investigado

EMENTA

É direito do advogado, suscetível de ser garantido por habeas corpus, o de, em tutela ou no interesse do cliente envolvido nas investigações, ter acesso amplo aos elementos que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária ou por órgão do Ministério Público, digam respeito ao constituinte. (STF/DJU de 06/10/06)

Firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que as investigações sigilosas da polícia ou do Ministério Público não alcançam o patrono do suspeito ou investigado, ao qual deve ser assegurada a vista dos autos e admitida a possibilidade de intervenção. É o que consta da presente decisão da Segunda Turma, Relator o Ministro Cezar Peluso, com o seguinte voto:

O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): 1. Esta Corte consolidou o entendimento de que ?não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do Relator que, em habeas corpus requerido atribunal superior, indefere a liminar? (súmula 691).

Nos termos do que decidiu no HC n.º 84.014-AgRg (rel. Min. MARCO AURÉLIO), admite, todavia, exceção ao enunciado da súmula 691, nos casos de flagrante constrangimento ilegal. É a hipótese.

2. Tem a Corte decidido que se não pode contrapor a eficácia de eventual decreto de sigilo de procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, ou, acrescento , como no caso dos autos, por órgão do Ministério Público ao acusado e ao defensor:

?II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial.

1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio.

2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial , é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7.º, XIV), da qual ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade.

3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5.º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe

faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações.

4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório.

5. Habeas corpus deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição? (HC n.º 82.354, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 24.09.2004. No mesmo sentido, cf. HC n.º 86.059-MC, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ de 30.06.2005; e, ainda, decisão monocrática proferida pelo Min. NELSON JOBIM, no HC n.º 87.619-MC, DJ de 01.02.2006).

3. Se o sigilo, previsto no art. 20 do Código de Processo Penal, serve à investigação do fato aparentemente criminoso e, ao mesmo tempo, tende a prevenir o sensacionalismo e a preservar a intimidade, a vida privada, a imagem e a honra das pessoas envolvidas na apuração, é não menos certo que não pode ser oposto ao indiciado, ou suspeito, nem ao defensor, sobretudo no que se refere aos atos instrutórios(1). A juntada de documentos é, ninguém duvida, ato instrutório definitivo, de inegável importância, que pode ser praticado já na fase preparatória da persecutio criminis.

Juntado, o documento submete-se ao princípio da comunhão da prova.

A persecução penal, nessa primeira fase, compõe-se de atos de investigação e atos de instrução. Quem investiga ?só rastreia?,(2) pesquisa, indaga, segue vestígios e sinais, busca informações para elucidação de um fato. Uma vez documentada a diligência, passa-se da investigação à instrução, que pode dar-se mediante atos transitórios suscetíveis de ser renovados ou definitivos, como é o caso da juntada de documentos, os quais se incorporam ao bojo de eventual ação penal(3) e, salvo falsidade, escusam repetição.

É este cunho de definitividade inerente a certos atos que exige garantia ao exercício do direito de defesa já na fase preliminar da persecução penal:(4) ?diante da prática de atos de instrução de caráter definitivo, que não mais se repetem, deve-se reconhecer a possibilidade de exercício do direito de defesa no inquérito policial?(5).

4. Há, é verdade, diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do seu bom sucesso. Mas, se o sigilo é aí necessário à apuração e à atividade instrutória, a formalização documental de seu resultado já não pode ser subtraída ao indiciado nem ao defensor, porque, é óbvio, cessou a causa mesma do sigilo.

Noutras palavras, guarda-se sigilo somente quanto aos atos de investigação, assim na deliberação, como na sua prática (art. 20 do CPP). Os atos de instrução, enquanto documentação dos elementos retóricos colhidos na investigação, esses devem estar acessíveis ao indiciado e ao defensor, à luz da Constituição da República, que garante à classe dos acusados, na qual não deixam de situar-se o indiciado e o investigado mesmo, o direito de defesa. O sigilo aqui, atingindo a defesa, frustra-lhe, por conseguinte, o exercício.

E não são poucas as normas infraconstitucionais que põem o defensor a salvo do sigilo eventualmente decretado à persecução penal.

A Lei n.º 8.906/94 Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil preceitua, no art. 7.º, inc. XIV, que ?são direitos do advogado examinar, em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontados?. Note-se que a norma abrange os autos de flagrante. Logo, o direito subjetivo é assegurado também no caso de não ter sido ainda instaurado formalmente o inquérito. De modo que quem dirige atos da primeira fase da persecução não pode vedar ao defensor do acusado vista dos autos, assim para tomar apontamentos, como para extrair cópias.

Ao depois, o art. 16 do Código de Processo Penal Militar estatui que ?o inquérito é sigiloso, mas seu encarregado pode permitir que dele tome conhecimento o advogado do indiciado?. E a Lei n.º 6.368/76, que dispõe sobre medidas de prevenção e repressão ao tráfico e uso ilícito de entorpecentes, determina, no art. 26, que ?os registros, documentos ou peças de informação, bem como os autos de prisão em flagrante e os de inquérito policial para apuração dos crimes definidos nesta Lei serão mantidos sob sigilo, ressalvadas, para efeito exclusivo da atuação profissional, as prerrogativas do juiz, do Ministério Público, da autoridade policial e do advogado na forma da legislação específica?.

Tudo isso está a predicar que o acusado tomando-se o vocábulo em acepção ampla não pode ser condenado a manter-se alheio a todo o procedimento prévio, até porque a possibilidade de conhecimento dos atos já ali documentados, objeto da garantia constitucional, não se presta a embaraçar a continuidade nem a eficácia das investigações inquisitoriais, senão que é, antes, mero ônus da defesa técnica, enquanto virtualidade capaz de, em ato, facilitar ou favorecer-lhe o exercício oportuno em eventual ação penal, quando, não, de colaborar com a própria autoridade que dirige a apuração provisória. Nada obsta a que, ciente do estado desta, a defesa ofereça ao juízo absoluto da autoridade investigante subsídios para a correta reconstituição historiográfica dos fatos, que, sobre ser interesse do inocente, é o escopo último da atuação estatal no campo da polícia judiciária.

A autoridade que conduz o procedimento investigatório pode, assim, impor sigilo ao inquérito policial, quando necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade. Mas tal sigilo não pode alcançar o acusado nem seu defensor,(6) no que toca aos atos de instrução já realizados e documentados:

?A única conciliação possível entre o art. 20 do Código de Processo Penal (que permite sigilo no inquérito) e o Estatuto do Advogado é a seguinte: o decreto de segredo no inquérito policial ou em qualquer outro procedimento não alcançará, jamais, o advogado.?(7)

5. Por outro lado, o instrumento disponível para assegurar a intimidade dos investigados o sigilo oposto a terceiros, alheios ao procedimento não figura título jurídico para limitar a defesa nem a publicidade, enquanto direitos do acusado. E invocar a intimidade dos demais investigados, para impedir o acesso aos autos, importa restrição ao direito de cada um dos envolvidos, pela razão manifesta de que os impede a todos de conhecer o que, documentalmente, lhes seja contrário.

Por isso, a autoridade que investiga deve, mediante expedientes adequados, aparelhar-se para permitir que a defesa de cada paciente tenha acesso, pelo menos, ao que diga respeito a seu constituinte.

6. Cumpre assinalar, ao depois, que se não pode sujeitar o exercício do direito de defesa, como parece sustentar a Procuradoria nas informações, a eventual e posterior análise, pelo Ministério Público, dos documentos enviados pelo Banco Central, sob risco de esvaziamento da garantia constitucional de que se trata.

Diversamente do inquérito policial, que tem disciplina própria e explícita no Código de Processo Penal, até com prazo para seu término (art. 10, caput), sob pena de responsabilidade administrativa, civil e penal por abuso de autoridade, nos termos da Lei n.º 4.868/65, os procedimentos investigatórios do Ministério Público não encontram figura nem forma legais, de modo que não se sabe a que rito predeterminado e estável devam obedecer, nem sequer se estão subordinados a prazo certo, tudo o que sobremodo dificulta o exercício do direito de defesa do investigado, sotoposto à expectativa de eventos futuros e incertos, não infensos, em tese, a abusos.

Diante da remessa, ao Ministério Público, de documentos que revelam, em tese, eventual prática de delito, com autuação e registro do feito, não é lícito impedir à defesa do paciente de ter acesso aos autos, pelo menos quanto às peças que lhe digam respeito, sob pretexto de o expediente diga-se, registrado em 2004, ao que parece não ter sido, até agora, analisado pelo Ministério Público Federal, quando dele a imprensa já lhe teve conhecimento e noticiou que o paciente é alvo da mesma investigação!..

Afinal, nada obsta a que o paciente possa, desde logo, afastar a suspeita que lhe pesa, concorrendo para o escopo último das investigações e evitando investigação formal. É, antes, até recomendável que o Ministério Público amplie o campo de busca de elementos para dilucidação dos fatos: novos dados podem ser trazidos aos autos pela própria defesa da pessoa que se encontra ou supõe encontrar-se na posição de suspeito.

7. Ante o exposto, defiro, em parte, a ordem, unicamente para garantir ao paciente, por intermédio de seus advogados regularmente constituídos, o direito de acesso, no que lhe diga respeito, aos autos do Procedimento MPF/PR/RJ n.º 1.30.011.000936/2004-59, em trâmite perante a Procuradoria da República, no Estado do Rio de Janeiro. Observo e deixo claro, ainda, que este provimento assegura ao paciente o direito de acesso apenas às informações já formalmente documentadas nos autos desse procedimento investigatório.

É como voto.

Notas

(1) O ?sigilo não pode atingir o acusado nem seu defensor, no que toca aos atos de instrução realizados no curso do inquérito policial? (SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 340).

(2) PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Breves notas sobre o Anteprojeto de Lei, que objetiva modificar Código de Processo Penal, no atinente à investigação policial. In: SHECAIRA, Sérgio Salomão (Org.). Estudos criminais em homenagem a Evandro Lins e Silva: criminalista do século. São Paulo: Método, 2001, p. 344.

(3) FREIRE, Ranulfo Melo. Valor probatório do inquérito policial. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo, ano 1, n.º 1, número especial de lançamento, p. 133-8, jan.-mar. 1993, p. 136. TOVO, Paulo Cláudio. O inquérito policial em sua verdadeira dimensão. AJURIS Revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, ano 22, n.º 63, mar. 1995, p. 321. AZEVEDO, Noé. As garantias da liberdade individual em face das novas tendências penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1936, p. 172-173 e 192-193.

(4) MENDES DE ALMEIDA, Joaquim Canuto. Processo penal, ação e jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, p. 187.

(5) SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 366.

(6) FERNANDES, Antônio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 130-131.

(7) COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins da. Publicidade na investigação criminal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo, ano 7, n.º 84, p. 13, nov. 1999.

Decisão unânime, votando com o Relator os Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.