Ação Penal. Tráfico de entorpecentes. Advogado constituído no inquérito policial, com poderes expressos para atuar durante a instrução criminal. Ausência de intimação para os atos processuais. Cerceamento de defesa.

HABEAS CORPUS N.º 86.206-8-CE

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Rel.: Min. Cezar Peluso

EMENTA

Desde o recebimento da denúncia, é nulo o processo em que, dos atos processuais, não foi intimado o patrono constituído pelo réu, mas defensor público que o juízo lhe nomeou.

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(STF/DJ de 20/6/08)

Configura cerceamento de defesa a não intimação para os atos do processo de advogado constituído no inquérito policial, com poderes expressos para atuar durante a instrução criminal, pois ao réu assiste o direito de escolha de defensor de sua confiança.

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Consta do voto do Relator:

O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): 1. Assiste razão ao impetrante. Verifico que o paciente, cidadão estrangeiro, constituiu advogado de confiança para o exercício da defesa técnica (fls. 32). Tal fato não foi contestado pelo Juízo de primeiro grau, que, ao julgar embargos de declaração, afirmou:

“3 – Inicialmente é de ser registrado que realmente existe uma procuração do réu em favor do advogado, datada de 24/11/2003 (três dias após a sua prisão em flagrante), às fls. 65 do inquérito policial que acompanha a denúncia, estranhamente preenchida de forma manuscrita e à caneta, na última linha, ‘os poderes: acompanhar processo em uma das varas da Justiça Federal’.

Esclareça-se, no entanto, que o réu compareceu em juízo para seu primeiro interrogatório no dia 28/1/2004 (fls. 20/22), sem advogado e em nenhum momento da instrução (segundo interrogatório e audiência de instrução foram realizados no dia 2/2/2004 – fls. 28/29), o réu manifestou interesse em ser defendido por quem quer que seja além dos nobres Representantes da Defensoria Pública Federal.

(…)

Percebe-se, portanto e claramente, que o advogado Luiz Bessa apenas obteve procuração do réu ainda quando do interrogatório mas não aceitou a causa (por motivos econômicos ou particulares que só aos diretamente envolvidos interessa). Tanto assim é que o réu sequer sabia o endereço do ilustre causídico e com ele não mais teve contato por disposição própria de ambos até o réu saber o teor da sentença condenatória. Assim se depreende das afirmações manuscritas do réu (‘…descobrir o nome e endereço do meu advogado constituído…’).

6 – Incabível e totalmente despropositado, pois, falar em ‘rejeição’ por pane deste juízo de qualquer advogado que não apareceu nos autos do processo criminal e que só agora, após a condenação, é indicado pelo réu como seu defensor. Frise-se que a simples assinatura de uma procuração, ainda mais quando o réu estava no calor do flagrante, não impede a revogação tácita de tal mandato por ocasião dos interrogatórios, quando o réu não afirma ter advogado e aceita os préstimos da Defensoria Pública” (fls. 49).

Vejo, também, que a procuração – que outorgava poderes expressos ao advogado para acompanhar processo-crime em uma das Varas da Justiça Federal – foi juntada aos autos do inquérito policial, ao final remetidos ao Juízo (fls. 36). Mas esse advogado constituído não foi intimado para nenhum ato processual, até receber comunicação da sentença condenatória (fls. 38).

Alega o acórdão recorrido que houve apenas nomeação de defensor dativo para apresentação da defesa preliminar, depois de transcorrido o prazo legal sem manifestação da defesa. Ora, se o defensor constituído não foi intimado, não surpreende que a defesa preliminar não tenha sido apresentada, nem tampouco que o patrono não se tenha feito presente aos interrogatórios.

Argumentar com que a ausência do defensor conduziu à “revogação tácita” do mandato é confundir a causa com o efeito. Se o defensor não foi intimado porque se lhe desconsiderou a procuração recebida, como afirmar-se tenha sido esta tacitamente revogada por força e a partir da ausência do defensor aos atos dos quais não teve prévio conhecimento?

Ademais, o relato do juízo de primeiro grau deixa claro que, se o réu deixou de afirmar que possuía advogado constituído, também não foi intimado para indicação de outro de sua confiança, antes de lhe ser designado defensor público.

Ou seja, tenho por fatos incontroversos: (i) o paciente constituiu, regularmente, advogado de confiança, com poderes para atuar no inquérito policial e no respectivo processo-crime; (ii) tal advogado não foi intimado para nenhum ato processual; e, (iii) ainda quando se admita que a ausência do defensor ao interrogatório tenha conduzido à revogação tácita da procuração, ainda detinha ele o mandato no momento da apresentação da defesa preliminar, para o qual tampouco foi intimado.

2. A falta de intimação do defensor constituído é causa de nulidade absoluta.

Não se objete não ter sobrevindo prejuízo ao réu, dada a assistência por defensor público. O fato em si da condenação do paciente basta ao reconhecimento do gravame e à pronúncia da nulidade do processo, como já ponderei alhures, com o apoio do Plenário desta Corte:

“Alegou-se – e, em casos análogos, se alega sempre – não ter sido demonstrado o prejuízo da defesa. Mas o dano, esse resulta do teor mesmo do julgamento contrário ao réu e, como tal, é certo e induvidoso. Tenho relevado este fato intransponível O prejuízo da defesa, em casos semelhantes, é sempre certo.

Presumida é apenas a relação jurídico-causal entre o vício do processo e o teor gravoso do julgamento. E tal relação não pode deixar de presumir-se ante a impossibilidade absoluta de se atribuir o resultado injurioso ao réu a causa jurídica independente.

Só se poderia, deveras, afastar, quando menos, esse nexo entre o defeito processual e a certeza do prejuízo da defesa, se o resultado concreto do julgamento, caso em que qualquer recurso seria absolutamente anódino e infrutífero, lhe tivesse sido favorável. Todas as vezes em que, sob argüição de vício processual na sessão de julgamento ou na decisão, a defesa saia de algum modo prejudicada, não é lícito opor argumentação baseada na hipótese de que, fosse outro o procedimento adotado, segundo a lei, o resultado teria sido o mesmo. É simplesmente impossível saber como se comportariam os julgadores, ou o prolator da decisão, se houvera sido observada a ordem legal do processo garantido pela Constituição!

Noutras palavras, não há como nem por onde argumentar com o fato de que a defesa não seria capaz de demonstrar outro prejuízo, senão com resultado danoso do caso concreto, porque não se pode predizer, ou melhor, não se pode adivinhar que, se tivesse sido outra a ordem observada, o resultado do julgamento teria sido o mesmo.

Por isso, esta Corte, não poucas vezes, aludiu à impossibilidade de o réu provar prejuízo, que eu nem diria mais concreto, porque não há nada mais concreto que ato de todo em todo contrário aos interesses da defesa, corno é o juízo condenatório.

A mim me parece, dessarte, que tal objeção, aliás acolhida no acórdão ora impugnado, não tem, com o devido respeito, consistência alguma, porque pane de lucubração, qual seja, a de que, eventualmente, o mesmo resultado seria obtido, se a defesa, no caso, por exemplo, se tivesse manifestado depois do representante do Ministério Público. Não sabemos se o seria. Podemos até imaginar que, se se repetir o julgamento, o resultado da causa será o mesmo.

Mas isso fora puro exercício de imaginação, que nada tem a ver com a necessidade de resguardar a ordem do justo processo da lei (due process of lare), garantido como direito fundamental pela Constituição da República. Até porque, doutro modo, se introduz este princípio incomentável: a ordem legal do processo pode ser sempre violada, desde que o resultado seja esse ou aquele! Isto é, outorga-se ao arbítrio do julgador, ao arbítrio de quem deve controlar a legalidade e a justiça do processo, o poder de decidir se deve, ou não, observar a Constituição da República, secundum eventum litis!” (HC n.º 87.926, Pleno, Rel. Min. CEZAR PELUSO, j. 20/2/2008).

Com base em outros argumentos, essa Corte tem decidido que a inobservância da forma procedimental adequada traz ínsito o prejuízo ao réu, por representar sempre limitação à defesa, de modo que, aparecendo incompatível com a garantia posta no art. 5.º, LV, da Constituição da República, conduz à inexorável nulidade absoluta do processo:

“II – Defesa – Entorpecentes – Nulidade por falta de oportunidade para a defesa preliminar prevista no art. 38 da L. 10.409/02: demonstração de prejuízo: prova impossível (HC 69.142, 1.ª T., 11/2/92, Pertence, RTJ 140/926; HC 85.443, 1.ª T., 19/4/05, Pertence, DJ 13/5/05). Não bastassem o recebimento da denúncia e a superveniente condenação do paciente, não cabe reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada a oportunidade legal para. a defesa preliminar, a denúncia não teria sido recebida” (HC 84.835, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ 26/8/2005. Grifos nossos).

E, em casos similares, este Tribunal entendeu que a nomeação de defensor público não faz superada a nulidade conseqüente à falta de intimação do defensor constituído:

“‘HABEAS CORPUS’ – DEFESA PRÉVIA -DEFENSOR CONSTITUÍDO AUSENTE AO ATO DE INTERROGATORIO JUDICIAL – NECESSIDADE DE SUA NOTIFICAÇÃO PARA OFERECÊ-LA – A QUESTÃO DA LIBERDADE DE ESCOLHA DO DEFENSOR PELO RÉU – A GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL – DIREITO DO RÉU PRESO DE SER REQUISITADO E DE COMPAARECER AO JUÍZO DEPRECADO PARA OS ATOS DE INSTRUÇÃO PROCESSUAL – POLÊMICA DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENOAL EM TORNO DO TEMA – ANULAÇAO DO PROCEDIMENTO PENAL – CONCESSÃO DO ‘WRIT’ – CONSUMAÇÃO DA PRESCRIÇÃO PUNITIVA DO ESTADO. VEDAÇÃO DA ‘REFORMARTIO IN PEJUS’ INDIRETA – DECLARAÇAO DA EXTINÇÃO DA PUNIBIBILIDADE.

– O defensor constituído, quando ausente ao ato de interrogatório judicial do réu, deverá ser notificado para efeito de apresentação da defesa previa. Esse ato de notificação, que é indeclinável, impõe-se como natural consectário da cláusula constitucional do devido processo legal. A falta dessa notificação constitui nulidade absoluta, apta a infirmar a própria validade do processo penal condenatório.

– O réu tem o direito de escolher o seu próprio defensor. Essa liberdade de escolha traduz, no plano da ‘persecutio criminis’ específica projeção do postulado da amplitude de defesa proclamado pela Constituição.

Cumpre ao magistrado processante, em não sendo possível ao defensor constituído assumir ou prosseguir no patrocínio da causa penal, ordenar a intimação do réu para que este, querendo, escolha outro advogado. Antes de realizada essa intimação – ou enquanto não exaurido o prazo nela assinalado – não e lícito ao juiz nomear defensor dativo sem expressa aquiescência do réu” (HC 67.755, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 11/9/1992. Grifos nossos).

AÇÃO PENAL. Defensor constituído. Indicação pelo réu. Negação de patrocínio, sob escusa de não ter sido constituído. Nomeação de defensor público, sem intimação do réu para indicação ou constituição de outro patrono. Atuação apenas da defensoria pública, com a qual não manteve contato pessoal no curso do processo. Condenação. Nulidade processual absoluta caracterizada. Cerceamento de defesa. Ofensa ao direito de se comunicar com o patrono. HC concedido para anular o processo desde o interrogatório, inclusive. Precedentes.

É nulo o processo, desde o momento em que se recusou o advogado indicado pelo réu ao patrocínio da defesa, sob escusa de não ter sido constituído, se, sem intimação do réu para indicação de outro, lhe foi designado defensor público, que atuou até a condenação, sem ter mantido nenhum contato ou comunicação pessoal com o acusado. (HC 85.200, Rei. Min. EROS GRAU, DJ 3/2/2006. Grifos nossos).

3. Ante ao exposto, concedo a ordem, para anular o processo desde o recebimento da denúncia, exclusive, determinando que o juízo proceda à intimação do advogado constituído pelo paciente para apresentação da defesa preliminar de que trata o art. 38 da Lei n2 10.409/02. Determino, ainda, de ofício, a imediata expedição de alvará de soltura em favor do paciente, se por ai não estiver preso, diante do evidente excesso de prazo da prisão cautelar.

Decisão unânime da Segunda Turma, Relator o Ministro Cezar Peluso, acompanhado pelos Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola de Magistratura.