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“Habeas Corpus n.º 87.926-8 – São Paulo

Rel.: Min. CEZAR PELUSO

EMENTA

No processo criminal, a sustentação oral do representante do Ministério Público, sobretudo quando seja recorrente único, deve sempre preceder à da defesa, sob pena de nulidade do julgamento”.
(STF/DJU de 25/4/2008)

A sustentação oral da defesa deve ser posterior à da acusação, sob pena de nulidade do julgamento em caso de condenação do réu.
Decisão plenária do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade de votos, Relator o Ministro Cezar Peluso.

Consta do voto do Relator:

O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator): 1. A questão última desta causa está em saber se, em sessão de julgamento de recurso exclusivo da acusação, pode o representante do Ministério Público manifestar-se somente depois da sustentação oral da defesa.

Penso que não.

2. Ainda que invoque a qualidade de custos legis, o representante do Ministério Público deve sempre pronunciar-se, na sessão de julgamento de recurso, antes da sustentação oral da defesa.

As partes têm direito à estrita observância do procedimento tipificado na lei, como concretização do princípio do devido processo legal, a cujo âmbito pertencem as garantias específicas do contraditório e da ampla defesa (art. 5.º, LIV e LV, da Constituição da República).

O exercício do contraditório deve, assim, permear todo o processo, garantindo sempre I como ônus, a possibilidade de manifestações oportunas e eficazes da defesa, desde a de arrazoar e contra-arrazoar recursos, até a de se fazer ouvir no próprio julgamento destes.

Em recurso em sentido estrito, interposto contra decisão de rejeição da denúncia, o denunciado, que, como é óbvio, ainda não foi citado, deve ter assegurado o exercício do ônus de se manifestar nos autos, pois seu interesse primordial reside em não ser réu, ou seja, em não lhe ser instaurada ação penal. Foi tal entendimento que levou esta Casa a editar a súmula 707, a qual enuncia que “constitui nulidade a falta de intimação do denunciado para oferecer contra-razões ao recurso interposto da rejeição da denúncia, não a suprindo a nomeação de defensor dativo”.

Estou em que fere, igualmente, as garantias da defesa todo expediente que impeça o acusado de, por meio do defensor, usar da palavra por último, em sustentação oral, sobretudo nos casos de julgamento de recurso exclusivo da acusação. Invocar, para negá-lo, a qualidade de custos legis do Ministério Público perante os tribunais, em sede recursal, parece-me caracterizar um desses artifícios lingüísticos que tendem a fraudar as garantias essenciais a sistema penal verdadeiramente acusatório ou de partes.

Em excelente estudo sobre o tema, o ex-Procurador-Geral do Distrito Federal, ROGÉRIO 5CHIETTI, anota:

“É, pois, superficial e simplista a distinção entre Ministério Público agente (parte) e Ministério Público consulente (fiscal), eis que, na ação penal condenatória, por mais que uma dessas funções se esconda por trás da roupagem verbal ou escrita da manifestação do membro do Parquet estará ela presente”(1).

De fato, na ação penal de iniciativa pública, condicionada ou não, o Ministério Público é parte, se não em sentido material – porque o poder-dever de acusar e punir não é dele, mas do Estado(2) -, é-o, ao menos formalmente, parte acusadora:

“O Ministério Público atua no pólo ativo de toda ação penal por ele iniciada, formulando a acusação, recolhendo provas e promovendo a ação penal rumo à obtenção de uma decisão judicial. Logo, não é de negar-se- lhe a qualidade de ‘pane’ na relação processual penal. […] O Ministério Público, por conseguinte, é uma pane diferenciada, sui generis, e em virtude dessa peculiaridade em seu modo de agir diz-se que o Ministério Público é ‘parte formal’, ‘pane instrumental’, ou mesmo, paradoxalmente, ‘parte imparcial'”(3).

Desse modo, entendo difícil, senão ilógico, cindir a atuação do Ministério Público no campo recursal, em processo-crime: não há excogitar que, em primeira instância, seu representante atue apenas como parte formal e, em grau de recurso – que, frise-se, constitui mera fase do mesmo processo -, se dispa dessa função para entrar a agir como simples fiscal da lei.

Órgão uno e indivisível, na dicção do art. 127, § 1.º, da Constituição da República, não há como admitir que o Ministério Público opere tão-só como custos legis no curso de processo onde, em fase diversa, já tenha funcionado, mediante outro órgão, como encarregado da acusação, sob pena de se violentar a própria sintaxe acusatória do processo penal. O conteúdo da opinião legal, de fundo, exposto no parecer ou na sustentação oral, é de pouco relevo neste tema. Ou seja, ainda que, no mérito, o Ministério Público postule a absolvição do acusado, continua sempre órgão incumbido da acusação e não deixa de agir ou de poder agir como parte que é. Conclusão diversa levaria à concepção de processo de parte única parte, o acusado, o que parece absurdo diante de um sistema garantista, acusatório, agônico, marcado pela garantia de contraditoriedade(4).

Permitir, pois, que o representante do Ministério Público promova sustentação oral depois da defesa, ainda mais no caso de ser ele o recorrente, comprometeria o pleno exercício do contraditório, que pressupõe o direito de a defesa falar por último, a fim de poder, querendo, reagir à opinião do Parquet. Afinal, na lição velha e clássica de JOAQUIM CANUTO MENDES DE ALMEIDA, contraditório é a “ciência bilateral dos atos e termos processuais e possibilidade de contrariá-los”(5), ou seja, ordem que implica possibilidade estrutural de realizar ações lingüísticas ou reais de contradição, a título de reação regrada a ações da outra parte.

Visando, pois, a dar-lhe plena eficácia, pugna a doutrina pelo reconhecimento e garantia do direito ou poder de o acusado falar por último, notadamente nas sessões de julgamento de recursos interpostos apenas pela acusação:
“Podendo ser a manifestação do Ministério Público, como parte ou fiscal da lei, ‘carga contrária’, já que em tese pode se colocar ao lado do colega acusador de primeira instância, é evidente, por força do contraditório, da garantia do devido processo legal e do princípio da ampla defesa, que não pode ser a última. […] A inversão processual consagrada pela intelecção que prestigia a manifestação do Procurador (de Justiça ou da República) por último, ocasiona um sério prejuízo ao recorrido, que não pode se manifestar repelindo os argumentos eventualmente incriminadores ou mesmo para ampliar e melhor traba1har os que lhe forem favoráveis. Nessa ordem de idéias, torna-se irrefutável a conclusão de que, sob pena de nulidade, o representante do Ministério Público em segunda instância não pode se manifestar por último quando o órgão recorrente for seu colega de primeira instância”(6).

“O acusado, independentemente da sua posição contingencial (recorrente ou recorrido) durante o processamento do recurso, deve ter sempre assegurada a palavra por último, ou, ao menos, após a intervenção oral do acusador, enquanto exteriorização concreta do princípio do favor defensionis. Isso porque, considerando-se a ação penal em sua inteireza, e não apenas em suas fases procedimentais estanques, o acusado estará sempre na posição defensiva, rebatendo a imputação que lhe foi endereçada pelo órgão de acusação, já que, sendo uma a relação processual penal, o conflito entre o direito de punir do Estado e o direito à liberdade do acusado permanece íntegro no segundo grau de jurisdição. […] Ainda que, portanto, o acusado venha a ser o autor do recurso, continuará sendo ele o réu da ação penal, com todo o interesse em perseverar na tentativa de expor suas razões fático-jurídicas e de mostrar ao tribunal ad quem o desacerto da tese acusatória e da sentença que lhe foi desfavorável”(7).

Comungo da idéia de que, no julgamento de recursos exclusivos da acusação, o princípio do contraditório assegura o uso da palavra ao acusado, por intermédio do defensor, sempre depois da intervenção oral do Ministério Público que oficie no tribunal:

“Mesmo que, gratia argumentandi, se adote o entendimento de que o Ministério Público não exerce qualquer função acusatória no juízo de segundo grau […] ou mesmo quando se trate de ação penal privada (onde o Parquet é, aí sim, apenas fiscal da lei), o tribunal deverá conceder a palavra à defesa após a sustentação oral do Parquet”(8).

O direito de a defesa falar por último decorre, aliás, do próprio sistema normativo como se vê, sem esforço, a diversos preceitos do Código de Processo Penal. As testemunhas da acusação são ouvidas antes das arroladas pela defesa (art. 396, caput). É conferida vista dos autos ao Ministério Público e, só depois, à defesa, para requerer diligências complementares (art. 499), bem como para apresentação de alegações finais (art. 500, incs. I e III). A defesa manifesta-se depois do Ministério Público ainda quando funcione este apenas como custos legis, o que ocorre nas ações penais de conhecimento, de natureza condenatória, de iniciativa privada: determina o art. 500, § 2.º, que o Ministério Público, nesses casos, tenha vista dos autos depois do querelante – e, portanto, antes do querelado. O próprio RISTF, no art. 132, § 5.º, tem previsão análoga à do art. 500, § 2.º, do CPP. Neste ponto, aliás, andou bem o Regimento Interno do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao prever, no art. 470, inc. VI, que, nas ações penais onde houver recurso do Ministério Público, falará em primeiro lugar o seu representante em segunda instância.

Daí, a inadmissibilidade de interpretação estrita ou dita literal do art. 610, § único, do Código de Processo Penal, no sentido de que o Ministério Público poderia, na sessão de julgamento relativo a recurso, fazer sustentação oral após a defesa, ainda quando se trate de recurso interposto pela própria acusação.

Na verdade, leitura atenta do art. 610, § único, não induz sequer à conclusão de que, nele, teria o Código estabelecido alguma ordem invariável de manifestação, pois é regra que contém mera referência à necessidade de o Ministério Público manifestar-se, donde a pressuposição, esta, sim, de toda a lógica e coerência com os princípios, de que deva fazê-lo, quando menos, segundo a ordem decorrente da sua posição processual perante o recurso, senão oriunda da sua contraposição teórica à condição do réu.

De igual modo merece releitura constitucional o disposto no § 20 do art. 143 do Regimento Interno do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região, que dispõe que o Ministério Público Federal fará uso da palavra após o recorrente (que, no casos dos autos, é ele próprio, por meio do órgão de primeiro grau) e o recorrido.
3. Ademais, é claro, aqui, o prejuízo da inversão na ordem das sustentações orais:

“O parecer (ou qualquer nome que se dê à manifestação escrita ou oral do Parquet), mesmo despido de roupagem acusatória, pode, como já ressaltado linhas atrás, ser determinante do resultado desfavorável do julgamento em relação ao acusado, o que legitima este, por conseguinte, a merecer a oportunidade de exercitar o contraditório”(9).

O fato de ter sido dado provimento ao recurso do Ministério Público indica, desde logo e com clareza, gravame suficiente ao reconhecimento da nulidade, embora não se negue que defesa eficiente – aquela que, em tese, garantiria resultado absolutório ou, de outra forma, favorável ao acusado – não se confunde com defesa efetiva, esta, sim, exigível à vista da garantia constitucional.

Quando, porém, se impõe ao réu que promova sustentação oral antes da intervenção do representante do Ministério Público, sobretudo no caso de ser este o recorrente, cria-se manifesta restrição à defesa, com afronta ao art. 5.º, LV, da Constituição da República, o que conduz à nulidade do julgamento. A defesa aí já não é plena, como deve sê-lo, e, por sustentar a invalidez, prejuízo virtual bastaria, porque é, a rigor, impossível sua demonstração em ato, como tem a Corte reconhecido:

“1. Defesa: Defensoria Pública: ausência de intimação pessoal da pauta de julgamento do recurso em sentido estrito: nulidade absoluta: precedentes. 2. Sustentação oral frustrada pela ausência de intimação da pauta de julgamento: demonstração de prejuízo: prova impossível (v.g., HC 69.142, l.ª T., 11/2/92, Pertence, R1J 140/926). Frustrado o direito da parte à sustentação oral, nulo o julgamento, não cabendo reclamar, a título de demonstração de prejuízo, a prova impossível de que, se utilizada aquela oportunidade legal de defesa, outra teria sido a decisão do recurso” (RHC n.º 85.443, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 13/5/2005. No mesmo sentido, cf. HC n.º 83.835, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 26/8/2005).

4. Diante do exposto, nos termos do art. 659 do Código de Processo Penal, julgo prejudicado o pedido em relação ao paciente Paulo Francisco da Costa Aguiaa Toschi, pela extinção da punibilidade dos fatos a ele imputados, em razão da prescrição (fls. 130-136).

E concedo a ordem em favor de Sérgio Antônio Bertussi, para anular o julgamento do Recurso em Sentido Estrito n.º 2001.61.81.005478-9, do Tribunal Regional Federal da 3.ª Região, procedendo-se a novo julgamento, observado o direito de a defesa do paciente, se pretenda proceder à sustentação oral, somente fazê-lo depois do representante do Ministério Público.

Notas:

(1) CRUZ, Rogério Schietti Machado. Garantias processuais nos recursos criminais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 94-95.
(2) TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. 2.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 146-159; MAZZILLI, Hugo Nigro. Introdução do Ministério Público. 5.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 259.
(3) CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias…, op. Cit., p. 80-81.
(4) CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias…, op. Cit., p. 89.
(5) Princípios fundamentais do processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 82. Grifei.
(6) TORON, Alberto Zacharias. O contraditório nos tribunais e o Ministério Público. In: Estudos em homenagem a Alberto Silva Franc. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 99-100.
(7) CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias…, op. e loc. cit..
(8) CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias…, op. cit., p. 192-193.
(9) CRUZ, Rogério Schietti Machado, Garantias…, op. cit., p. 193.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.