Ação Penal. Processo…

Ação Penal. Processo. Interrogatório. Realização um dia após a citação do réu. Impossibilidade de contratar defensor e de manter contato com defensora nomeada para defesa prévia. Argüição oportuna da deficiência. Não produção conseqüente de prova da defesa. Cerceamento. Prejuízo manifesto. Nulidade processual caracterizada. Ofensa ao devido processo legal.

Habeas Corpus n.º 84.373-5 BA
Rel.: Min. Cezar Peluso
EMENTA

É nulo o processo penal em que se não assegurou contato do acusado com o defensor, antes do interrogatório realizado um dia após a citação.
(STF/DJe, de 26/6/09)

Decidiu o Supremo Tribunal Federal, através de sua Segunda Turma, que é nulo o processo em que não se concedeu ao acusado oportunidade de contratar defensor, ou de manter contato com o defensor dativo antes do interrogatório, realizado um dia após a citação.

Decisão por unanimidade de votos, tendo sido o Relator Cezar Peluso acompanhado pelos Ministros Celso de Mello e Eros Grau.

Consta do voto do Relator:

O Senhor Ministro Cezar Peluso (Relator):

1. A alegação de eventual inépcia da denúncia se encontra prejudicada, diante da superveniência de sentença condenatória (HC n.º 88.327, Rel. Min. Eros Grau, DJ 26/5/2006; HC n.º 84.833, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 24/8/2008).

2. No que concerne ao alegado vício na citação, por ter sido esta realizada no dia anterior ao interrogatório, tem razão o impetrante.

Embora haja o paciente comparecido ao ato na data designada, não houve tempo para que antes se lhe designasse patrono, o que configura, decerto, cerceamento de defesa.

Por entender configurado o constrangimento ilegal, concedi medida cautelar de ofício, nos seguintes termos:

“Conforme se colhe dos autos, o paciente foi citado e intimado para a audiência de interrogatório no dia 29 de novembro de 2001 (fls. 53v.), ou seja, um dia antes da realização do ato, ao qual esteve presente, desacompanhado de advogado (fls. 4), posto que acompanhado de curadora, porque menor de vinte e um anos à época. Por essa razão, o magistrado nomeou-lhe a Dra. Divani Queiroz como advogada, determinando fosse intimada para oferecer defesa prévia(IBID.).

Ou seja, o acusado foi interrogado sem ter tido contato com quem lhe foi nomeada patrona, responsável pela defesa técnica.

Na defesa prévia, a patrona consignou, explicitamente, que deixava de arrolar testemunhas, porque lhe não teria sido possível manter contato com o acusado, preso, donde haver pedido, de modo genérico, a absolvição (fls. 59v.).

Na data original, ausente a defensora, suposto devidamente intimada, foi remarcada a audiência de instrução para o dia 12 de março do mesmo ano (fls.60). Mas tampouco a essoutra audiência compareceu a defensora, tendo o acusado, então, constituído o Dr. Cosme de Araújo, por defensor (fls. 63). Observe-se que, na mesma audiência, foi encerrada a instrução, com a só inquirição de uma testemunha de acusação, passando-se, imediatamente, às fases dos arts. 499 e 500 do Código de Processo Penal (Ibid.).

O prejuízo que sofreu o paciente é manifesto. Nenhuma prova foi produzida em seu favor. E não o foi, porque, na fase decisiva e preclusiva da defesa prévia, não se desincumbiu a defesa desse ônus.

Não é o caso de indagar como deveria ter-se portado a defensora nomeada. Irrelevante tal juízo à vista do gravame sofrido pelo acusado, que se acha preso há mais de dois anos, em processo que, prima facie, parece eivado de nulidade, à conta de haver ficado indefeso o réu na fase mais delicada e decisiva da causa.

A Lei n.º 10.792/03, alterando a redação do art. 185 do Código de Processo Penal, passou a exigir, como elemento do justo processo legal, contato prévio do acusado com o defensor, antes do interrogatório, verbis:

“Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.

§ 1.º O interrogatório do acusado preso será feito no estabelecimento prisional em que se encontrar, em sala própria, desde que estejam garantidas a segurança do juiz e auxiliares, a presença do defensor e a publicidade do ato. Inexistindo a segurança, o interrogatório será feito nos termos do Código de Processo Penal.

§ 2.º Antes da realização do interrogatório, o juiz assegurará o direito de entrevista reservada do acusado com o seu defensor “(grifei)”‘. (fls. 227-228)

Mantenho a decisão.

Houve flagrante prejuízo ao paciente em decorrência do breve interstício entre a citação e o interrogatório. Compareceu ao ato sem defensor, de maneira que sua defesa foi aí deficiente.

A respeito, lecionam GRIOVER, GOMES FILHO e SCARANCE FERNANDES:

“(…) estabelece o art. 570 do CPP que “a falta ou a nulidade (rectius, irregularidade) da citação, da intimação ou notificação estará sanada, desde que o interessado compareça, antes de ato consumar-se, embora declare que o faz para o único fim de argui-la. O juiz ordenará, todavia, a suspensão ou o adiamento do ato quando reconhecer que a irregularidade poderá prejudicar direito da parte’; trata-se, aqui, de aplicação do princípio da instrumetalidade, que informa todo o sistema processual, pois a cientificação foi realizada, atingindo-se a finalidade do ato; cumpre atentar, porém, para a parte final do dispositivo, que objetiva afastar eventual prejuízo decorrente da irregularidade”. (in GRINOVER, Ada Pellegrini ET AL. As Nulidades no Processo Penal. São Paulo: RT, 2001, p.104).

E concluem:

“A propósito, decidiu o TACrimSP no julgamento da AP.377.261-5: “é inadmissível aceitar-se como válido interrogatório do réu se não foi ele regularmente citado, pois o comparecimento a Juízo supre a falta de citação na medida em que se assegure ao réu aquilo que a citação lhe traria, ou seja, a ciência prévia da imputação e a oportunidade de orientar-se com advogado’.” (idem, p. 36).

A regularidade da citação e a nomeação de defensor dativo satisfazem apenas formalmente a exigência da defesa técnica, pois é inconcebível que a advogada nomeada tenha tido condições de atuar, de maneira evidente e efetiva, em benefício do acusado.

Como tenho afirmado, a garantia constitucional da ampla defesa não perfaz exigência puramente formal, mas deve ser exercida de fato (HC n.º 92.680, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 25/4/2008; HC n.º 91.501, Rel. Min. EROS GRAU, j. 10/2/2009). E as circunstâncias autorizam estimar que, no caso, não foi ela exercida senão apenas formalmente e, pois, sem respeito à garantia constitucional, que a exige efetiva.

3. Pelo exposto, concedo a ordem, para, confirmando a liminar, anular o processo desde o interrogatório, inclusive.

Ministro Cezar Peluso
Relator

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.