Ação penal. Denúncia…

Ação penal. Denúncia. Rejeição pelo juízo de primeiro grau. Recebimento em recurso em sentido estrito. Repúdio ao fundamento da decisão impugnada. Acórdão carente de fundamentação sobre os outros aspectos da inicial. Nulidade processual caracterizada. Não conhecimento do recurso extraordinário. Concessão, porém, de habeas corpus de ofício.

RECURSO EXTRAORDINÁRIO N.º 456.673-7-CE
Rel.: Min. Cezar Peluso
EMENTA

É nula a decisão que recebe denúncia sem fundamentação suficiente sobre a admissibilidade da ação penal.
STF/DJe de 22/5/09)

Decidiu a Suprema Corte por votação unânime, Relator o Ministro Cezar Peluso, que é nula a decisão que recebe a denúncia sem fundamentação suficiente sobre a admissibilidade da ação penal. Acórdão carente de fundamentação sobre os outros aspectos da inicial. Nulidade processual caracterizada. Não conhecimento do recurso extraordinário. Concessão, porém, de habeas corpus de ofício.

Consta do Voto do Relator:
O Senhor Ministro Cezar Peluso – (Relator):

1. Inviável o recurso.
O recebimento da denúncia pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região impede-lhe o reexame da matéria fático-probatória.
Embora o recorrente sustente que não se cuida de reexame de provas, mas, sim, de desrespeito ao contraditório e à ampla defesa, porque as premissas factuais do Tribunal não lhe permitiriam concluir pelo recebimento, tem-se que a análise dos seus argumentos exigiria juízo prévio sobre a matéria factual, à luz de cuja prova a denúncia foi oferecida e recebida.
No recurso extraordinário, como é óbvio, a cognição adscreve-se ao exame da questão federal suscitada, sendo defeso o revolvimento da prova (súmula 279).

Já notou esta Corte:

“AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. OFENSA AO ART. 5.º, INCISOS LIV E LV. INVIABILIDADE D0 REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA STF N.º 279. OFENSA INDIRETA À CONSTITUIÇÃO FEDERAL. INQUÉRITO. CONFIRMAÇÃO EM JUÍZO DOS TESTEMUNHOS PRESTADOS NA FASE INQUISITORIAL. 1. A suposta ofensa aos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa passa, necessariamente, pelo prévio reexame de fatos e provas, tarefa que encontra óbice na Súmula STF n.º 279. 2. Inviável o processamento do extraordinário para debater matéria infraconstitucional, sob o argumento de violação ao disposto nos incisos LIV LV do art. 5.º da Constituição. 3. Ao contrário do que alegado pelos ora agravantes, o conjunto probatório que ensejou a condenação dos recorrentes não vem embasado apenas nas declarações prestadas em sede policial, tendo suporte, também, em outras provas colhidas na fase judicial. Confirmação em juízo dos testemunhos prestados na fase inquisitorial. 4. Os elementos do inquérito podem influir na formação do livre convencimento do juiz pan a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo. 5. Agravo regimental improvido.” (RE-AgR n.º 425.734, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 28/10/2005).

Por fim, com relação à suposta violação ao art. 6.º, LXVII, o acórdão recorrido decidiu segundo a jurisprudência desta Corte, que distingue prisão civil por divida e crime de omissão do recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. Confira-se, a respeito:

“APROPRIAÇÃO INDÉBITA NÃO RECONHECIMENTO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENOÁRIAS. PRISÃO CRIMINAL E, NÃO, CIVIL INOCORRÊNCIA DE OFENSA AO ART. 5.º, LXVII DA CF. AGRRE improvido”. (RE n.º 391.996-AgR, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJ de 19/12/2003. No mesmo sentido: RE n.º 414.545, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ de 11/3/2004; RE n.º 350.976, Rel. Min. SEPULVEDA PERTENCE, DJ de 27/2/2004; RE n.º 350.976, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 20/11/2003; AI n.º 420.536, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, DJ de 27.2.2003; RE n.º 247.428, Rel. Min. NELSON JOBIM, DJ de 12/11/2002; AI n.º 366.390, Rel. Min. NELSON JOBIM, DJ de 18/10/2002; HC n.º 78.234, Rel. Min. OCTÁVIO GALLOTTI, DJ de 21/6/1999).

2. Verifico, no entanto, que é caso de concessão de habeas corpus de ofício.

O Ministério Público Federal ofereceu denúncia pela suposta prática do crime descrito no art. 168-A, § 1.º, inc. I, do Código Penal. O Juízo da 12.ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará não a recebeu, porque, “no caso concreto, a conduta descrita pela lei é omissiva (deixar de repassar ao INSS os valores descontados dos salários dos empregados), o que não faz o crime prescindir da categoria ‘dolo’, visto que é necessário detectar-se, na conduta, a vontade livre e consciente de apropriar-se dos referidos valores. A denúncia, entretanto, não trata do dolo, nem dele se lhe infere indícios” (fl. 205).

A acusação interpôs recurso em sentido estrito para o Tribunal Regional Federal da 5.ª Região, que lhe deu provimento. Eis o inteiro teor do voto proferido pelo relator: “Conheço do recurso, porque presentes seus pressupostos de admissibilidade.

Assiste razão ao recorrente.

O réu foi denunciado pela prática da conduta descrita no art. 168-A, § 1.º, I, do CP, cuja figura constitui crime omissivo próprio e o elemento subjetivo do tipo, é o dolo genérico, consistente na vontade livre e consciente de não-recolher, no prazo, a contribuição arrecadada dos empregados.

Entendo, diferentemente do juiz singular, que não importa para a configuração do delito, o réu ter ou não se apropriado dos valores descontados dos empregados (TRF 4.ª Região, 1.ª Turma, Acr n.º 96.0452181-0/PR, Rel. Juiz Gilson Dipp, Diário da Justiça 11 jun. 97, p. 42.837).

No mesmo sentido é a posição firmada pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Confira-se:

“PENAL E PROCESSUAL PENAL. APROPRIAÇAO DE CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS. REJEIÇÃO DA DENÚNICA. DESCABIMENTO. DEMONSTRAÇAO DO ESPECIAL FIM DE AGIR DESNECESSIDADE. CRIME OMISSIVO PURO. LEI N.º 8.866/94 DE NATUREZA CIVIL. NÃO CONFIGURA A HIPÓTESE DE ABOLITO CRIMINIS. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. A denúncia deve ser considerada peça idônea, consoante o aRt. 41, do CPP, quando a narração objetiva dos fatos praticados pelo indiciado subsumem-se à descrição abstrata da lei penal. In casu, conforme se verifica nos autos, o Recorrido praticou a conduta delituosa descrita na denúncia, tendo inclusive confirmado tal assertiva nos depoimentos, estando, assim comprovados os indícios de autoria e materialidade dos fatos, suficientes para o início da ação penal.

2. É entendimento pacificado na 5.ª Turma, desta Corte, que o crime previsto no art. 95, alínea d, da Lei n.º 8.212/91, se consuma com o simples não recolhimento das contribuições previdenciárias descontadas dos empregados no prazo legal, ressalvados os casos de extinção de punibilidade. 3. O não recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados ainda constitui-se fato típico penal, uma vez que a Lei n.º 8.866/94, devido ao seu caráter civil, não tem a força de descriminalizar a conduta delineada no ano 95, d, da Lei n.º 8.212/91.

4. Recurso especial provido. (Resp n.º 347404-CE, Rel. Min. Laurita Vazo DJ 4 ago. 03, p. 356 – sem grifo no original).
Posto isso, dou provimento ao recurso, para cassar a decisão de fls. 204/7, e receber a denúncia, determinando ao juiz monocrático o processamento da ação.

É como voto.” (fls. 257-258)

A sentença está baseada em fundamento único, qual seja, a exigência de dolo específico para configuração do crime de apropriação indébita previdenciária.

Ora, não obstante o Tribunal a que tenha afastado esse fundamento, não poderia receber de imediato a denúncia sem a análise de seus outros requisitos de admissibilidade.

A inteira transcrição do voto condutor evidencia clara falta de fundamentação do acórdão sobre os demais aspectos da denúncia.

3. Ante o exposto, nego seguimento ao recurso, mas concedo ordem de habeas corpus de ofício, para cassar o acórdão recorrido, a fim de que outro seja proferido, devidamente fundamentado. Votaram com o Relator os Ministros Joaquim Barbosa e Eros Grau.

Ronaldo Botelho é advogado e professor da Escola da Magistratura.