Zelador da lâmpada

Uma das espécies em extinção neste início de século é a nobre figura do livreiro, o abnegado comerciante que vende o artigo mais difícil de vender-se. O livreiro é um herói, o zelador da civilização, conforme escreveu Monteiro Lobato neste texto clássico que segue abaixo.

“Entre os mais humildes comércios do mundo está o do livreiro. Embora sua mercadoria seja a base da civilização, pois que é nela que se fixa a experiência humana, o livro não interessa ao nosso estômago nem à nossa vaidade. Não é portanto compulsoriamente adquirido. O pão diz ao homem: ou me compras ou morrerás de fome. O batom diz à mulher: ou me compras ou te acharão feia. E ambos são ouvidos. Mas se o livro alega que sem ele a ignorância se perpetua, os ignorantes dão de ombros, porque a própria ignorância é sentir-se feliz em si mesma, como o porco em sua lama.”

“E, pois, o livreiro vende o artigo mais difícil de vender-se. Qualquer outro lhe daria maiores lucros; ele o sabe e heroicamente permanece livreiro. E é graças a essa generosa abnegação que a árvore da cultura vai aos poucos aprofundado as suas raízes e dilatando a sua fronde. Suprima-se o livreiro e estará morto o livro e com a morte do livro retrocederemos à idade da pedra, transfeitos em tapuias comedores de pau podre.”

“A civilização vê no livreiro o abnegado zelador da lâmpada e em que arde, perpétua, a trêmula chamazinha da cultura.”

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Monteiro Lobato só não preconizou que o zelador da lâmpada se extinguiria antes que a chama. Escrita num antanho em que o governador Bento Munhoz da Rocha trocava figurinhas com José Ghignone na porta da livraria, a oração do visionário de Taubaté nos remete ao livreiro Aramis Chain. Dos últimos abnegados comerciantes de cultura que ainda vendem seus produtos pessoalmente, na porta da livraria, Chain sabe por quê nunca mais vimos um governador trocar figurinhas com um livreiro:

“Os líderes brasileiros leem? Os senadores do Brasil leem? A liderança é muito importante. O pai em casa sequer leva o jornal para os filhos. É muito importante discutir um texto em casa. Perdemos muito tempo cuidando de cachorro. Poderiam dar um pouco de tempo para um livro. Veja como ocorre uma deformação do tempo das pessoas. O livro está pedindo: onde está o leitor?”

Se o presidente nunca foi visto na porta de uma livraria, o governador nunca foi fotografado com um livro na mão, o que devem estar lendo estes senhores?

Chain tem a resposta, exemplo a quem devia dar exemplo: “O povo brasileiro está doente. Por isso, o grande fenômeno de livros de autoajuda está em grande evidência, pois com certeza é um povo doente que está procurando encontrar uma bengala e uma cura para todas as suas dores de cotovelo”.

Os zeladores da lâmpada estão em extinção. Instituições como José Ghignone e Aramis Chain deviam ser tombadas para o bem do patrimônio afetivo da cidade.