Volta ao mundo em 80 livros

Nas antigas moradas curitibanas, um local era sagrado: a biblioteca. Na época, a televisão só pegava no tranco, com a imprescindível ajuda de Bombril pendurado na antena. Imprescindível também a lareira, que em muitas casas era falsa, tendo um celofane vermelho e uma lâmpada para complementar os efeitos visuais de inverno.

Na segunda metade do século passado, contam os curitibaníssimos, famosas eram as bibliotecas do crítico Temístocles Linhares e do ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto. Afora outras tantas que eu, como ave de arribação, nem posso citar. Ah, sim, a biblioteca do David Carneiro era fabulosa e a do mestre Wilson Martins, pois sim!

Da biblioteca do Bento o escritor Wilson Bueno já foi testemunha, conforme as lembranças do bardo que habita o Palacete de Tico-tico de ricas estantes: “Cresci nas proximidades da casa de Bento, ali na Carlos de Carvalho. Duas ou três vezes, pivete atrevido que sempre fui, percorri, deslumbrado, a biblioteca do mestre. Afável e de uma simplicidade rara em homens públicos, devo confessar que o Dr. Bento não se fez de rogado frente ao menino pobre e de calças curtas que, curioso da fortuna intelectual do vizinho ilustre, lhe bateu ao portão da bela residência. Tenho, até hoje, o exemplar de um de seus livros, Itinerário (1958), devidamente autografado. Uma das preciosidades de minha modesta biblioteca. Claro, aos 12, 13 anos, não tinha consciência da importância histórica do vizinho célebre, mas todas as vezes em que lhe importunei a paciência, pronto atendeu o piá curioso com modos cândidos de avô complacente. E, jamais vou esquecer: quando lhe confessei que desejava ser médico, demoveu-me do intento, de um modo irônico: Por que médico, guri? Médico só lida com doença… E o teu destino, vê-se, não parece ser este…”.

De fino faro, daquela vez Bento Munhoz da Rocha Netto não percebeu a qual medicina se referia Wilson Bueno: doutor do espírito, esta era a vocação do piá de calças curtas.

Cinquenta anos depois, se o pivete atrevido ousasse entrar numa morada curitibana de bom tamanho (ou seja, um apartamento no Batel), não poderia percorrer deslumbrado uma biblioteca, porque elas já não existem mais. E se existem são raríssimas. Como exemplo, o acervo do casal Alberto Albergaria e Noriko Ohta, que moram bem felizes em cômodos com 10 mil volumes, inclusive no banheiro. Albergaria trabalhou na Usina de Angra, na área nuclear, e a jornalista Noriko passou pelo O Globo e Jornal do Brasil. São dois novos curitibanos atípicos. Não fossem assim, na principal sala do apartamento teriam um home theater, com uma televisão de 42 polegadas e demais anexos de última geração.

Com um home theater, é como viaja a maioria dos nossos contemporâneos. Com uma biblioteca viajávamos nós outros, turistas de bibliotecas.

Guardamos boas lembranças daquelas andanças mundo afora: conhecemos Paris pela primeira vez tendo como guia Víctor Hugo e, no mesmo pacote, Michel Zevac nos apresentou os doges de Veneza (A Ponte dos Suspiros e Les Pardaillans). Nós os “ratos de bibliotecas”, meninos pobres e de calças curtas, dávamos a volta ao mundo com Júlio Verne. Sem passaporte, apenas com a carteirinha da biblioteca pública. Quando em casa não tínhamos biblioteca, tínhamos gibiteca, e assim conhecemos a África inteira montados no Herói, o cavalo do Fantasma. No Brasil viajamos muito, conhecemos todo o nordeste a custo zero: José Lins do Rego era um grande anfitrião, Graciliano Ramos nos desvendou as catacumbas do Getúlio Vargas e Jorge Amado, aquele adorável cafajeste, nos mostrou a Bahia de cabo a rabo, principalmente o rabo. Cruzamos o Rio Grande do Sul escoltados por Erico Veríssimo e no Rio de Janeiro sentamos no Maracanã ao lado de Nelson Rodrigues.

Nos últimos anos voltei a fazer todos estes roteiros turísticos. Só que agora num home theater.