Vergonha, tchê!

Cronista dos mais celebrado da impressa gaúcha, só perde para Luis Fernando Veríssimo, o gremista Paulo Sant’Ana escreveu que a “perplexidade que o Internacional causou ontem em Abu Dhabi não atingiu apenas os torcedores colorados. Até mesmo os gremistas que “secam” ficaram estupefatos, já que nem eles esperavam a derrota do time”.

Mais que uma zebra, a derrota do time gaúcho está sendo encarada como uma vergonha nacional. Como pode o Todo Poderoso Internacional de Porto Alegre perder para um atrevido “timinho africano” que, por audácia, tem o desplante de também se considerar Todo Poderoso no próprio nome? Tout Puissant Mazembe (em tradução literal do francês, “Todo Poderoso Mazembe”), ou TP Mazembe, foi fundado em 1932 por monges beneditinos que dirigiam o Instituto de São Bonifácio do Congo. Para a recreação dos seminaristas, os beneditinos decidiram criar um time de futebol que tinha São Jorge como padroeiro. O que talvez explique a bela imagem dos africanos rezando embaixo das traves.

Para o jornalista Juca Kfouri, a vitória do TP Mazembe não foi nenhum milagre de São Jorge, nem mesmo foi resultado das milagrosas defesas do goleiro Kidiaba: “Perder a final, para a Inter de Milão, não seria nada agradável, mas seria aceitável, normal. Ser, no entanto, o primeiro time da América do Sul eliminado antes da decisão de um Mundial de clubes é nódoa que o Inter carregará para sempre. E perdeu sem perdão, sem bola na trave, sem erro de arbitragem, sem azar, sem apelação”.

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O escritor Lima Barreto (1881/1922), era um mulato filho de escravos que, se tivesse nascido mais para o final do século, poderia ter sido jogador de futebol. Longe disso, o jornalista e funcionário público tornou-se um dos nossos maiores escritores, assim reconhecido depois de morrer alcoólatra e louco aos 41 anos de idade.

Contista do cotidiano carioca, Lima Barreto tem um conto sobre futebol (o que era uma raridade) que talvez explique a nossa autossuficiência em relação ao rude esporte bretão: quando os adversários perdem, são justamente derrotados; quando perdemos, o resultado é vergonhoso. Isto porque somos doutores em “football”.

“Na Avenida”, chama-se o conto de Lima Barreto:

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Quem é aquele sujeito alto, tão solene, que fala naquele grupo com tanta gravidade?
– É o doutor Paniatercski.
– É doutor em quê?
– Em medicina?
– Naturalmente, é um grande cirurgião.
– Não é.
– Então é um clínico conceituado.
– Não é.
– Estou disposto a crer que é um especialista afamado em olhos, garganta, nariz e ouvido.
– Não é.
– Se não é isto, é um professor admirado pelos seus discípulos. Com certeza, ele professa zoologia ou botânica – não é?
– Qual o quê! Nunca lhe passou pela cabeça ensinar ciências naturais.
– Se não é isso e o mais que já perguntei, certamente ele abandonou a medicina e arredores e meteu-se pela literatura. É talvez um prosador nefelibata, um símile – clássico -não será isso?
– Qual o quê! Estou convencido que não será capaz de adivinhar onde se baseia a sua celebridade e por que já tem ido à Europa, várias vezes, à custa do governo. Adivinha se é capaz!
– Certamente que não; pois não consigo atinar que um médico célebre possa sê-lo, fora da medicina e adjacência; e, quando não a exerce fora das letras. Então, dize lá de uma vez: donde vem o ar de autoridade com que fala, aquela suficiência?
– É sabichão de football. Eis aí!
– Proh pudor!

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Do latim, “proh pudor” significa que vergonha. Com tanta suficiência, quando iremos reconhecer que, do jeito que estamos jogando, já não é mais nenhuma vergonha perder para algum africano Todo Poderoso.