Um voo quase para a morte

A tragédia do copiloto suicida nos Alpes é a história que se repete sem o “quase”. Com o “quase” foi o episódio vivido pelos escritores portugueses David Mourão-Ferreira e Teolinda Gersão numa viagem de Portugal ao Brasil, quando um travesti suicida falhou e centenas de passageiros foram salvos pelo co-piloto, que no momento fatal também não estava na cabine do avião.

“Viver cada minuto como se fosse o último”, escreveu Mourão-Ferreira para um jornal português, contando sua incrível história em regime de pesadelo climatizado: “Tudo começou no instante em que o Boeing, roncando de modo suspeito, principiou a descer bruscamente dos 11.000 metros de altitude a que voava para cerca de 1.000 acima do nível do mar. (…) Desde os primeiros segundos me apercebi que alguma coisa de insólito se passava, quem sabe se o prelúdio de uma tragédia. Mas só depois da aterragem de emergência em Las Palmas é que vim a ter conhecimento da componente grotesca dessa iminente catástrofe e, por outro lado, em forma de susto retroactivo, a consciência de que só por pouco a tragédia se evitou. Não; não direi que vi a Morte diante dos olhos; mas senti-a debaixo dos pés. De toda a maneira, várias lições tirei do acontecimento. Antes de mais, a de que hoje não vale a pena irmos em busca da aventura: ela mesma se encarrega de vir ao nosso encontro. Seguidamente, a de que um avião, tal como o próprio mundo, ainda pode estar à mercê de um único louco. Por fim, a de que temos sempre a vida suspensa por um fio, do qual depende, por vontade de Deus, o tamanho do nosso presente: daí a urgência de vivermos cada minuto como se cada minuto pudesse afinal ser o último”.

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Teolinda Gersão contou, em seu relato, que voava para Brasília com apenas três dias para conhecer a cidade, nos intervalos de um congresso onde era esperada: “A noite ia ser longa, porque não consigo dormir em aviões; mas estava resignada a passá-la em claro, até chegar ao Rio, de manhã. Serviram o jantar e começaram a passar um filme: “Pretty Woman” (…) De súbito o avião oscila, e perde altura, vertiginosamente. Há ruídos de coisas caindo, louça que se parte, carros de serviço que embatem no corredor. Um poço de ar? Uma avaria? Cheira intensamente a queimado, penso que terá sido um curto-circuito, um começo de incêndio a bordo. E se não conseguirem extingui-lo? As hospedeiras correm, tapando a boca com lenços, o ar parece denso de fumo, a voz do comandante anuncia pelo alto-falante que um passageiro não identificado deitou gás lacrimogêneo na primeira classe. Não acredito no que ele diz, porque a versão do incêndio me é mais plausível. A história dele é demasiado absurda. Dentro de 30 minutos aterrissaremos nas Canárias, diz a mesma voz ainda. E eu penso que, se não extinguirem o incêndio, o avião vai explodir. Sinto com força que não quero morrer. Que uma catástrofe não tem razão de ser, não tem direito de ser, na minha vida. E vejo como nada disso faz sentido. Eu e os outros estamos absolutamente sem defesa. À mercê de todas as catástrofes. Até a aterrissagem, os minutos não passam. As pessoas calam-se, ficam em suspenso. O resto da história são mais de 30 horas de atraso, embarques e desembarques, entradas e partidas em hotéis, esperas infindáveis no aeroporto. Todos sabemos, finalmente os fatos: um travesti lançou gás paralisante na cabina do comandante e o avião não chegou a cair, mas por pouco. Entre embarque e desembarque e tantas horas de espera, acabei por contactar muitas pessoas. Ouvir o que sentiam e pensavam, saber como eram. Se eu tivesse mais espaço, falaria agora delas. Diria das gordas e das magras, das que se quebravam em pedaços e seguiam em cadeiras de rodas, das fleumáticas e das rubicundas, das gentilíssimas, das humildes, das excitadas, das convictas e das indecisas, das suaves e das brutas. Não deixaria nenhuma de fora, porque todas estavam lá e todas tinham o direito de existir. Como eu. Por isso eu falaria de todas. E os “outros&rd,quo;? O que estava do outro lado e pecou contra nós? O que não era igual a nós e a quem chamavam “ele” ou “ela”, “a coisa”, o “tal”, “o monstro”? Embora não tenha espaço, quero falar dele também. Para dizer que ele também é um ser humano. Enlouquecido e perturbado, é certo. Mas um ser humano. Com um desespero do tamanho do mundo”.