Um patacão para Requião

O diagnóstico é do governador Roberto Requião: ?A imprensa está possuída por Satanás. Só tem uma solução para essa mídia. Um padre exorcista. Eu conhecia um, mas ele morreu?. Nós também conhecíamos frei Miguel, o frei capuchinho que era exorcista oficial da Arquidiocese de Curitiba e, para os moradores da Vila Nossa Senhora da Luz, um homem santo.

Ilario Bottacin, o frei Miguel, viveu 30 dos seus 75 anos no Paraná, a maior parte deles em Curitiba, no pioneiro conjunto habitacional da Vila Nossa Senhora da Luz, onde a violência fazia parte do dia-a-dia, o vaso sanitário era usado para plantar flores e a cerâmica do chão era retirada, porque os ocupantes só se identificavam com o chão batido de origem.

Nesse cenário de miséria, a luz vinha de frei Miguel. Italiano de Treviso, ele nasceu em 14 de agosto de 1921. Morreu na vila, e assisti ao funeral: seu enterro, em 10 de abril de 1997, precisou do auxílio da Polícia Militar para controlar a fila de quilômetros de pessoas que foram se despedir daquele homem bom.

Ilario Bottacin era o filho número 13. Não tinha lembrança da mãe, que morreu no parto, a não ser pela medalha de prata, com a estampa de Nossa Senhora, que lhe salvou a vida na Segunda Guerra Mundial. Preso pelos alemães, ficou no campo de concentração desde a queda de Benito Mussolini, no início de 1944, até a vitória aliada. Foi nesse inferno que a única lembrança concreta da mãe salvou a vida do soldado Bottacin, em dezembro de 1944, quando ia ser fuzilado. Os presos iam de dez em dez para o paredão. De cada dez, um morria, relembrava frei Miguel: ?Eu fui o décimo, o tiro caiu em mim. Mas bateu na medalhinha de prata que eu trazia no peito. A bala ricocheteou, foi desviada. Desmaiei. Os outros noves fizeram um círculo em torno de mim, como se fossem me enterrar, e saí com uma pá. Fui salvo pela medalhinha de minha mãe?.

Por três vezes, frei Miguel escapou da morte. O segundo episódio ocorreu na Itália, em 1974. Distraído com familiares, perdeu o embarque e o avião Treviso-Milão caiu. Não restou um único sobrevivente.

Na terceira vez, o ?predestinado? – assim se considerava – se livrou do infortúnio com um relógio. Numa noite de 1971, na própria Vila de Nossa Senhora da Luz, frei Miguel foi surpreendido por um ladrão armado. Com um patacão salvou o dinheiro para o pagamento da obra da igreja, a própria vida e o futuro do larápio.

Depois de o intruso revirar tudo, sem nada encontrar, começaram a conversar. Com o cano do revólver na cabeça, frei Miguel ofereceu um cafezinho e um presente: ?Ofereço de coração o meu relógio, esse valioso patacão. Se der ouvidos às minhas palavras, com o relógio conta as horas de trabalho. Se não, na cadeia verá como são longas as horas de espera pela liberdade?. O ladrão saiu em paz.

****

Se a imprensa está precisando de um exorcista, Roberto Requião está precisando do patacão de frei Miguel. Não para ver como são longas as horas na cadeia, os jornalistas não desejam ver no governador um ladrão. Mas sim para contar as horas de trabalho, acompanhar o tempo que ainda lhe resta no poder.

?Não sei o que é, por onde passo, deixo sombra?, dizia Ilario Botaccin, o filho número 13. Roberto Requião precisa seguir os passos do exorcista que conheceu em vida, e deixar pelo menos sombra do governo que prometeu.