Tico Morgado

O nome é um mito nas bandas do Rio Iguaçu. Ex-jogador de futebol, já vestiu a camisa do Botafogo, jogou ao lado de Garrincha e, com todo o respeito ao mané que o chamava de Paraná, o maior craque que viu jogar foi Zizinho. Mas, rico de histórias, Tico Morgado lamenta que onde ganhou melhor foi no Cruzeiro de Ponta Grossa.

Quem entra pela primeira vez no Bar do Tico Morgado, na praça central de Porto Amazonas, não deixa de grudar os olhos naquele senhor rosado de saúde, com estatura de respeito. No aperto de mão de acolhida, a firmeza do olhar transparece a confiança de um senhor dono de si e da paisagem que o cerca, e com razão: no outro lado da rua nasceu Wilson Firmino Martins Morgado, no dia 21 de abril de 1929, filho de um imigrante português oriundo da Cidade do Porto, que por atavismo ergueu ali mesmo o Hotel Ideal, um marco de Porto Amazonas.

Filho de uma ninhada de 15 irmãos, de menino sabia os nomes dos barcos a vapor do Rio Iguaçu pelo apito de chegada ao porto. E da praça saía em disparada para carregar as malas dos viajantes, gente generosa na gorjeta.

Do balcão do Tico Morgado menino não sai sem anzol de pescaria, gente grande não paga a conta sem antes um gole de cachaça com butiá do barrilete de vidro, dos tempos em que aquela casa colonial, de madeirame de quase 100 anos, foi quase de tudo na Rua XV de Novembro, 243: hotel, escola, agência do Correio, delegacia, armazém, consultório de dentista e, desde 20 de abril de 1956, o Bar do Tico.

Passa boi passa boiada, voam bandos de gralhas azuis, borboletas e quero-queros, passam macacos, bugios, caxinguelês, os vapores do Rio Iguaçu já não passam mais abarrotados de madeira e erva-mate, mesmo assim os forasteiros não podem passar por Porto Amazonas sem dar uma passadinha no Bar do Tico Morgado, tomar uma cerveja de três reais e ouvir as histórias estampadas nos retratos da parede, desde quando o guapo dos Campos Gerais foi treinar em Monte Alegre, no time da Klabin, e acabou no ataque do Botafogo. No Maracanã, recebia a bola de Nilton Santos e tocava sob medida para Garrincha.

O ator Mário Schoemberger foi um dos tantos ouvintes de Tico Morgado, sempre atento ao butiá e ao movimento do botequim. Tanto que, certo dia, naquelas fases minguadas, na entressafra da bilheteria, o desconsolado Schoemberger dizia ao iluminador Beto Bruel:

– Acho que vou fazer um aporte financeiro de 200 reais e virar sócio do Tico Morgado!

O grande ator não precisou morar na barranca do Rio Iguaçu. No dia seguinte, por uma bênção de Nossa Senhora do Tamanduá, Mário recebeu convite do diretor Felipe Hirsch para atuar na peça “Jantar entre amigos”, e a vida do gordo mudou de cachaça com butiá para uísque Red Label.

Quando Garrincha foi fazer teste no Botafogo, Nilton Santos reconheceu: “Esse menino é um monstro!”. De fato, diz Tico Morgado, Garrincha era um monstro, mas não tão monstro quanto o Zizinho, monstro até maior que Pelé. Mário Schoemberger não duvidava de uma só palavra de Tico Morgado, e não há porque duvidar do maior conhecedor de lobisomens dos Campos Gerais.

Dos monstros da melhor tradição monstruosa, é na bruma de Porto Amazonas o maior criame de lobisomens do Brasil. Caçador das coxilhas que conhece todos os tipos de rastros, Tico espalma as mãos no balcão e demonstra as características das pegadas de um lobisomem:

– Os três dedos maiores na frente, polegar e mindinho atrás, coisa igual nunca vi! É um bicho diferente, tipo cachorro, mais feio que um guará, só aparece na bruma, olho vermelho intermitente (em Porto Amazonas, o intermitente é pisca-pisca de carro), e nunca ninguém ainda viu direito a sombra do demônio!

– Hoje, ainda existem lobisomens em Porto Amazonas?

– Existem, são muitos! Só que agora eles nascem em Curitiba, retiraram areia do fundo das barrancas. O mato em volta sumiu, esses lobisomens ainda vão acabar com o pouco que resta do velho Rio Iguaçu.

E Tico Morgado joga o olhar azul de saudade rio acima rio abaixo.