Suvaco do Cristo

A história é real, apenas dois personagens pertencem à imaginação. Um casal curitibano foi passar o Carnaval no Rio de Janeiro. Ou seja, todo o mês de fevereiro, porque o melhor da folia carioca são os blocos que antecedem as tradicionais Escolas de Samba. O casal é nosso velho conhecido: Estalactite e Estalagmite.

Estalactite é para baixo, Estalagmite é para cima. Foram feitos um para o outro. Tite e Mite estão se conhecendo há anos. Namorados, quase casados. Moram no mesmo prédio, mas dividem a mesma caverna em dias de não e em dias de sim. Em dias de não, Estalagmite mora com a mãe no apartamento de baixo. Em dias de sim, ela fica com Estalactite, no teto de cima. Estalactite, o Tite, mora em cima. Estalagmite, a Mite, mora embaixo.

Um para baixo, outro para cima, todo ano é a mesma coisa. Termina janeiro e Tite e Mite ainda não decidiram se ficam ou não ficam em Curitiba. Fico ou não fico, é uma velha polêmica curitibana que não afeta apenas o relacionamento do casal. Nessa época, Curitiba racha entre os que ficam e os que não ficam. Nos últimos 20 anos, os que não ficam estão vencendo, abrindo grandes vantagens estatísticas sobre os que ficam. E a prova está no tamanho das escolas de samba de Curitiba. Minguam ano a ano, acompanhando as vendas de confetes e serpentinas nas lojas especializadas. Fontes do setor apontam uma quebra de 40% ao ano.

Naquele verão, Tite e Mite foram surpreendidos com um telefonema que resolveu a questão: não ficariam em Curitiba porque o convite era irrecusável.

– Mite, você não sabe da maior. Através de uma amiga aí de Curitiba que trabalha no jornal O Globo, conheci o Paulinho. Gente finíssima, ele me emprestou a casa da família por três meses. É uma mansão dos sonhos no Jardim Botânico, bem embaixo do Suvaco do Cristo.

– Como assim, emprestou? Você não mora no Flamengo?

– Morava. Tive que entregar o apartamento. Foi quando conheci o Paulinho, que está passando uma temporada com o pai em Nova York.A casa é uma enormidade.Um castelo na Mata Atlântica. E como se não bastasse o canto dos passarinhos, na sala com vista para a floresta tem um piano maravilhoso. Coisa de cinema. Vocês vêm?

– Bem, Glorinha, depende do Tite. Sabe como ele é, assim pra baixo…

– Diz pra esse pré-histórico que aqui da vizinhança temos o bloco “Suvaco do Cristo”. Desfila no domingo antes do Carnaval. É do agito, junta uma porção de gente amiga e é botar camisa listrada e sair por aí, se divertindo pelo Rio afora.

Um para baixo, outro para cima, Estalactite e Estalagmite foram para o Rio de Janeiro e se instalaram de mala e cuia (do Tite) no Jardim Botânico, tendo um piano com vista para as “axilas divinas” do Cristo Redentor. O nome “Suvaco do Cristo”, dizem aqueles foliões que fundaram o bloco em 1985, surgiu de uma entrevista dada à época pelo maestro Tom Jobim, reclamando do mofo dos armários de sua casa.

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Uma semana depois do Carnaval, Tite e Mite estavam ainda no Rio de Janeiro tratando das perdas e danos físicos, quando numa bela manhã soa insistentemente a campainha. Estalagmite foi atender. Era um senhor de cabelos longos, de chapéu branco, muito charmoso, conhecido de algum lugar:

– Bom-dia! Desculpa incomodar, mas eu vim buscar o meu piano!

Era o próprio Tom Jobim, dono da casa e pai do Paulinho. Em seguida, entraram os carregadores e lá se foi o piano com o maestro orquestrando o resgate.

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Tom Jobim começou a escrever o poema “Chapadão” quando escolheu o terreno no alto do Jardim Botânico para construir a casa, que levou quatro anos para ficar pronta e o poema, oito.

Vou fazer a minha casa / No alto do chapadão / Vou levar o meu piano / Que ficou no Canecão.

Vou fazer a minha casa / No alto do chapadão / Vou levar a don’Aninha / Para me dar inspiração.

Vou fazer a minha casa / No alto de uma quimera / Vou criar um mundo novo / Inventar nova megera.