Se essa rua fosse minha

Não sei se a informação tem fundamento, se é apenas boato ou uma possibilidade remotíssima, mas um sabiá de quintal me contou que a prefeitura estaria desenvolvendo um projeto para transformar a Saldanha Marinho numa rua para pedestres. Não me dei ao trabalho de conferir na fonte, porque a esperança é a última que morre.

Fato ou boato, não importa. Importa é que a Rua das Flores é uma órfã há muitos e muitos anos esperando companhia. A pé ou de bicicleta, a Saldanha Marinho seria uma bem-vinda irmã mais nova a cruzar o centro da cidade, do setor histórico ao Bigorrilho, passando pela elegante Praça Espanha.

A prefeitura até pode alegar dificuldades técnicas para tanto, que a indústria automobilística tem prioridade na economia nacional e na circulação de mercadorias de alto valor agregado, ou, com certa razão, que a cidade no momento está congestionada de obras. Especialmente nas ruas e avenidas em torno da Linha Verde.

No entanto, por que não experimentar para ver como é que fica?

Mirem-se no exemplo de Copenhague. Numa fase experimental de três meses, até o início de janeiro, uma avenida de 14,3 km de extensão vai ser fechada para viaturas privadas.

A boa notícia veio do blog português Menos Um Carro (pela mobilidade sustentável, pelo ambiente, pelas cidades, pelas pessoas): “A maior artéria de Copenhague vai ser fechada ao trânsito de automóveis particulares, passando a ser exclusiva a bicicletas e transportes públicos. O projeto está em fase experimental e vai durar três meses. A iniciativa pretende resolver os crescentes problemas de trânsito em Copenhague. Ao mesmo tempo vai tornar as coisas mais fáceis para os ciclistas. A via é percorrida diariamente por 33 mil ciclistas, 65 mil passageiros de transportes públicos e 17 mil carros pessoais. A cidade dispõe de 340 km de vias seguras para os ciclistas e tem como ambição ser reconhecida como a metrópole mais amiga do ambiente em todo o mundo. Num mundo globalizado, é cada vez mais importante para a cidade atrair residentes, investimentos, eventos e turistas e para isso Copenhague continua a oferecer qualidade de vida e oportunidades, bem como um ambiente seguro e saudável para todos os que quiserem aqui morar”.

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Num preciso texto de opinião na revista Idéias (março de 2005), o jornalista Fábio Campana contou que há 30 e tantos anos veio a Curitiba um grupo de urbanistas e arquitetos europeus para ver a cidade em transformação: o calçadão da Rua XV, a canaleta do expresso, parques, terminais de transporte em construção, o diabo.

No fim do passeio, um urbanista inglês cujo nome se perdeu, não escondia o espanto:

– É, quando ficar pronta, esta cidade será ótima!

“A cidade quase triplicou de tamanho (continuou Fábio Campana), algumas das soluções de 30 anos foram ultrapassadas pelo crescimento. Curitiba não ficou pronta, nem seria de esperar que ficasse, posto que é um organismo vivo, e um organismo vivo deve renovar-se e refazer-se constantemente. Mas, como diziam os latinos, modus in rebus. Quando é exacerbado e estimulado pela especulação sem freios, o desenvolvimento urbano tende a se tornar um processo autofágico, desumano e destruidor.”

Nove em cada dez brasileiros são técnicos de futebol. Em Curitiba, a mesma proporção se aplica ao número de urbanistas que se revelam quando se trata de discutir planejamento urbano. Entre esses urbanistas de meia-tigela eu me incluo.

Modus in rebus: a expressão latina é do poeta Horácio, em que ele adverte contra os excessos e recomenda a moderação, há uma justa medida em todas as coisas.

Em Curitiba, os automóveis já passaram dos limites. E se existem certos limites para tudo, por que não delimitar a Saldanha Marinho para o tráfego (e não o tráfico) de bicicletas e pedestres?

Não custa, pelo menos, tentar. Desde já, os bípedes agradecem a atenção dispensada.