Santos de pau oco

A capa da revista Placar com Neymar crucificado só não mexeu com os brios dos fundamentalistas islâmicos, mais preocupados com a crucificação de Maomé. Na jurisdição da CBF, outra seita fundamentalista, até a CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil) publicou nota nesta sexta-feira em repúdio à capa com o “menino deus” da Vila Belmiro.

Desde cedo aprendi com o mestre Mussa José Assis que raça e religião provocam dores de barriga. Especialmente em jornalistas, os efeitos colaterais são graves. Em 1963, o jornal Última Hora, de São Paulo, publicou uma charge que, de certa forma, foi uma das sementes da revolução que viria no ano seguinte. Uma caricatura detonou uma onda de intolerância sem precedentes, culminando com uma ditadura noite adentro.

Foi num fim de semana nervoso – lembra o jornalista Mussa José Assis, que depois de uma temporada na Última Hora de São Paulo, viria a dirigir os jornais O Estado do Paraná e esta Tribuna do Paraná. O Brasil vivia um período de radicalização e Samuel Wainer, o dono do jornal que apoiava Jango Goulart, estava na mira dos generais. Naquele domingo Corinthians e Palmeiras jogariam o clássico paulista e, como era de costume, os craques costumavam rezar pela vitória no Santuário de Nossa Senhora Aparecida.

Dois dias antes do clássico, o editor Álvaro Paes Leme encomendou uma ilustração ao chargista Octávio, de saudosa memória, que desenhou os jogadores ajoelhados, rezando a Nossa Senhora Aparecida. Seria até uma charge edificante, não fosse um detalhe: Octávio carregou o traço nos lábios, deixando a virgem com a cara do Pelé. Uma santa beiçuda, mas o desenho não resultou desrespeitoso. Mesmo porque, a imagem de Nossa Senhora Aparecida é negra, com o paradoxo de possuir feições e traços de um branco.

Quando a edição dominical da Última Hora chegou às bancas do interior paulista, já na noite de sábado os vigários e devotos radicais passaram a telefonar insultos aos editores, que imediatamente trocaram a ilustração na edição da capital. Poucos foram os que viram a charge de Octávio da primeira edição. Entretanto, foi o que bastou para correr o boato de que jornal comunista que apoiava Jango Goulart teria estampado uma Nossa Senhora Aparecida com os pés de bode, as mãos do capeta e as feições de uma negra devassa.

O jornal quase foi destruído, carros de reportagem foram incendiados e as senhoras marchadeiras saíram às ruas de São Paulo pedindo o pescoço dos ímpios de Jango Goulart.

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Por coincidência, tanto no caso do jornal Última Hora quanto na revista Placar, Pelé e Neymar foram canonizados pela torcida brasileira. Dois santos de pau oco.