Sala de estar

Da excepcional safra de 1972, quarta-feira passada, 20 de maio, a Rua das Flores completou 37 anos. Podemos comemorar com champanhe a primeira via pedonal do Brasil, porém, ao contrário dos grandes vinhos, a rua do coração curitibano não está envelhecendo bem.

Nascida bela e charmosa, a Rua das Flores carece de cirurgia plástica para corrigir deformações pelo tempo e, principalmente, por intervenções não bem sucedidas. Quem te viu, quem te vê, Rua das Flores, sente saudades de um dos mobiliários urbanos mais criativos já feitos em Curitiba, a curiosa “Sala de Estar”. Projeto do arquiteto Abrão Assad, o mobiliário de acrílico roxo era também conhecido como a “penteadeira” da Rua das Flores.

Com uma torre de informações anexa, naqueles tempos em que Bill Gates ainda engatinhava, a “Sala de Estar” de Abrão Assad era a internet do curitibano. No alto da torre de acrílico, lia-se a programação da cidade: tudo que ia no Teatro do Paiol, o que estava no Teatro Guaíra, tudo que se passava na Cinemateca. Anexa, no remoto “lounge” dos curitibanos funcionava ainda a “Casa de Ingressos”, comodidade hoje só encontrada nas cavernas do shopping.

Era um guia cultural junto a um café com mesinhas em volta que tinha, de muito importante, um mural para deixar recados. Uma espécie de MSN, Orkut, um portal de relacionamentos com caneta e papel. Bastava escrever um bilhete (apertar o enter) e estávamos conectados com os amigos para marcar apontamentos diurnos e noturnos. Acreditem, o mural da “penteadeira” substituía com razoável economia os atuais torpedos do telefone celular. Através daquela tabula rasa de encontros e desencontros, muitos namoros terminaram, casamentos começaram.

A “Sala de Estar” da Rua das Flores, na quadra entre a Marechal Floriano e a Rua Dr. Muricy, era ainda uma central de empregos da classe artística: desenhistas, publicitários, escritores, músicos, atores, diretores, aquele era o palco de exibição de novos talentos.

Embaixo daquelas luminárias com esferas de acrílicos assistimos a uma das melhores cenas daqueles primeiros anos da Rua das Flores. Estávamos na “penteadeira” do Abrão Assad, quando apontou na mesa o sempre festejado escritor e jornalista Manoel Carlos Karam. Junto com o cartunista Solda, o iluminador Beto Bruel e mais o elenco de uma peça teatral, o primeiro a saudar Manoel Carlos Karam foi o pintor Rogério Dias.

– Karam, tenho uma ideia na cabeça para fazer uma peça!

Teatrólogo com uma capacidade assombrosa de produção, Karam respondeu modestamente, do seu feitio:

– Que bom, Rogério! Porque eu estou com meia dúzia delas embaixo do braço.

Na “penteadeira” só não era bom o cafezinho, que não se igualava àquele da Boca Maldita. Em compensação, tínhamos perto o chope do Bar Triângulo, logo avante o sanduíche pérola do Bar Cometa. E, para driblar o fígado, a Confeitaria das Famílias era logo ali.

A “Sala de Estar” da Rua das Flores era uma pequena aldeia onde se reuniam as várias tribos da cidade. Trinta e sete anos depois, conforme ditou a natureza urbana, as tribos se dispersaram. Se encontram, quando se encontram, nos shoppings. E da Rua das Flores resta o que estamos vendo. Antes uma “Sala de Estar”, hoje uma rua para não se estar.