A Confeitaria Blumenau está à venda. Quem se habilita a comprar uma fatia da doce memória de Curitiba? Na Rua São Francisco, 43, dona Ilse Maiochi pregou um pedaço de papel no vidro da porta anunciando que não tem mais condições de tocar o negócio: ?Se o comprador me quiser, posso ajudar no período do almoço?.

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No mesmo endereço há 44 anos, a cozinheira Ilse Maiochi era uma jovem empregada quando a quituteira alemã Tecla Probst inaugurou a Confeitaria Blumenau. Sempre servindo delícias da gastronomia colonial, doces e salgados, depois de alguns anos dona Tecla passou a confeitaria para a senhora Ertha Weber, junto com os fiéis clientes e a sempre presente Ilse Maiochi, que há cerca de 15 anos virou a dona da casa. Foi uma sucessão de senhoras ligadas entre si pelo esmero, o impecável padrão de limpeza e as velhas receitas caseiras: apfelstrudel, cuque e folhados de banana, maçã e creme eram as delícias da tarde. A broa com queijo branco e salame de Blumenau não tinha igual. No almoço – eram raros os restaurantes de almoço na época – tudo era uma delícia, inclusive as louras e gentis garçonetes. A comida não valia quanto pesasse. Vinha num prato feito, uma mistura formidável, em doses generosas – prato de motorista de caminhão, dizíamos. O feijão era servido numa travessa à parte. Para beber, SOK: um suco de uva fabricado em Colombo, garrafinha das pequenas, bem pequenas. Na sobremesa, sagu com creme.

Gente do Teatro Guaíra, gente do cinema – Sylvio Back era freguês – gente da Fundação Cultural, gente das artes plásticas, aquelas pequenas mesas recebiam todas as gentes do Setor Histórico, até da velha universidade ali na vizinhança.

Uma outra universidade se situava bem em frente da Confeitaria Blumenau: a Universidade de Portas Sempre Abertas da casa do escritor Manoel Carlos Karam, Rua São Francisco, 50. Na Confeitaria Blumenau alimentávamos o corpo, na velha casa da tia Tessália alimentávamos o espírito.

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Quando o jovem de Rio do Sul (SC) veio estudar em Curitiba, Manoel Carlos Karam recebeu de sua tia Tessália a casa montada. Com um piano e tudo. A casa do Manoel Carlos Karam era uma república alternativa freqüentada por praticamente todos os seus amigos. O cartunista Solda era um dos hóspedes do sofá da sala. Generoso, todos desfrutavam do que o Karam guardava: uma coleção fantástica de discos de vinil, toda a sua biblioteca, bebida, comida, os amigos, as amigas e o que o jornalista gostava de passar pra frente. Lá, sempre de madrugada, as visitas esperavam a chegada de Luiz Antônio, o irmão de Karam que hoje é maestro da orquestra de Fafá de Belém, para que o músico tocasse ao piano ?Bridge Over Troubled Water?. Era uma delícia: o gibi da Mafalda, ?O Jogo da Amarelinha?, de Cortazar e Karanzinho praticando ao piano. Cada dia era um amanhecer muito bonito. ?Karam foi parte da nossa universidade, depois continuada com Jamil Snege e Paulo Leminski; que professores!? – recorda Solda – ?Eles todos, gostavam de passar adiante aquilo que sabiam de cor e até o que tinham esquecido?.

Sorte nossa que a confeitaria da Rua São Francisco, 43, ficava em frente à Universidade Alternativa da Rua São Francisco, 50. A velha casa de porta para a rua que não existe mais.

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Manoel Carlos Karam lembra bem. Certa noite, alguém abandonou um caminhão carregado de frutas bem na porta da casa da tia Tessália. Laranjas, melancias, abacaxis, todas as frutas da estação, o proprietário daquele pomar sumiu. E como ninguém veio reclamar, passamos uma semana sem atravessar a rua para comer a salada de frutas com nata da Confeitaria Blumenau, que agora está à venda.