Na manhã de sábado passado, a Rua Riachuelo foi transformada em calçadão. Com o corredor interditado aos veículos, famílias e moradores saíram a flanar bem felizes, os comerciantes exibiram sorrisos e a antiga Carioca do Campo nem parecia uma rua que carrega no nome a vergonhosa Guerra do Paraguai.

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Dos logradouros mais sinistros, cenário preferido do Vampiro de Curitiba, o breve entreato de paz na Rua Riachuelo foi iniciativa do Sebrae, Fecomércio e Prefeitura, com a missão de reciclar um trecho dos mais deteriorados do Centro.

Hoje, a Riachuelo é uma rua sinistra, com nome sinistro.

A antiga Carioca do Campo, escreveu o historiador Valério Hoerner Júnior, “ficou assim conhecida porque ali havia uma bica d’água e os moradores dela se serviam para os misteres da cozinha e da higiene”.

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Anos mais tarde, os ufanistas da vergonhosa Guerra do Paraguai apagaram a simpática Carioca do Campo e, para cumprir sua denominação belicosa, o tempo se encarregou de corrompê-la. Triste destino a cidade reservou à Carioca do Campo. Prostituiu-se, sem culpa. Porque culpada não é ela, são os filhos dela.

Para lavar os pecados de uma rua chamada vergonha, a primeira atitude de Curitiba seria passar a borracha no atual nome, como já sugeriu Valério Hoerner Júnior: “O ufanismo brasileiro em face da guerra com o Paraguai induziu a que fossem celebrizadas as conquistas e logo duas ruas de Curitiba foram homenageadas: Aquidaban e Riachuelo. Mais tarde, outras também seriam, sempre em nome da Guerra que praticamente dizimou o povo paraguaio. E é sem dúvida um justo orgulho, exaltação legítima de quem venceu a pugna. O que perde, este sim, não deseja nem ouvir falar. Eu pessoalmente não sei, mas desconfio que entre as ruas de Assunção não haja uma a lembrar a batalha de Riachuelo. O interessante de tudo isso é que jamais se ouviu falar de uma tentativa de mudar esse nome. Creio mesmo que por inalienável direito usucapiendo as noções nominais e ambientais estão integradas para o resto da vida. Não acredito que se repita o que aconteceu com a Aquidabã: morre Emiliano Perneta, sacam a denominação antiga da rua para substituí-la pelo nome do notável simbolista. Talvez menos valiosa a Aquidabã do que a Riachuelo, este nome prevaleceu perante todas as mortes de cidadãos ilustres, sugerindo assim que batalha igual não se vê. Ou então, no decorrer de todo esse tempo, nenhum morto foi tão importante quanto Emiliano, o vate de “Ilusão”; nem tão forte a ponto de derrotar, nos entremeios das tribunas legislativas municipais, a estupenda batalha que nos deixa de alvitrar o espírito heróico e intrépido do soldado brasileiro. Afinal de contas, o Brasil não perdeu nenhuma guerra!”.

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Se jamais se ouviu falar de uma tentativa de mudar esse nome, nos entremeios das tribunas legislativas municipais, antes tarde do que nunca: como primeiro ato de reciclagem a cidade deve sacar das esquinas as placas com o nome Riachuelo. Se a batalha de Aquidabã tornou-se Rua Emiliano Perneta, poeta simbolista, que a batalha de Riachuelo torne-se, por igual justiça, Rua Jamil Snege, poeta e cronista.

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Curitiba não merece uma rua com o nome em homenagem a uma guerra onde todos saíram derrotados, como nos conta o livro “Avante soldados: para traz!”, de Deonísio da Silva:

“Deserção, traição, frouxidão, covardia e outras pragas grassam de parte a parte numa guerra. Como os heroísmos.

O comandante ordenou AVANÇAR! Todos marcharam para trás, fugindo do inimigo. (…) A versão que circulou entre nós era de que tinham sido os paraguaios os autores da façanha. No exército paraguaio, o insólito incidente era narrado como se tivesse acontecido com os nossos”.

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Sexta-feira passada Jamil Snege completaria 70 anos de bela existência. No dia seguinte, a Rua Riachuelo ganhou uma manhã de paz. Para reciclar uma rua chamada vergonha, Rua Jamil Snege seria um bom começo.