Rua da amargura

O bota-fora do cigarro tem o lado bom para os bares, botecos e similares: com a aglomeração de fumantes na calçada em frente, até parece que o endereço está “bombando”. Aparências enganam, freguesia. Compulsoriamente no olho da rua, os fumantes estacionados no meio-fio estão mesmo é na rua da amargura.

Os sócios da Souza Cruz se acham numa encruzilhada existencial: não sabem se aderem ao pelotão da saúde, se montam um boteco doméstico longe dos patrulheiros e da lei, ou se declaram-se às autoridades como elementos irrecuperáveis, doidos varridos, indecisos entre o cardiologista e o psicanalista. Outros, lúcidos mas nem tanto, querem reivindicar junto à prefeitura estacionamento privativo nas ruas (com direito a um cartão do “EstaR” pendurado no pescoço), nos moldes das vagas sinalizadas para carga e descarga, farmácias, idosos ou portadores de deficiência física. Estes últimos justificam pelo menos quatro metros de vaga exclusiva: fumante também é um deficiente físico, até prova em contrário.

Recém-chegado da “Oropa, França e Bahia”, um desses deficientes pulmonares nos fez um relatório do que cheirou (de nicotina) em torno do planeta. Enquanto acendia “unzinho” (não era baseado!), equilibrando-se no meio-fio, expeliu seu relatório de viagem em baforadas de ironia:

– Se o meu olfato não falha, cheguei à conclusão de que o Brasil optou pelo modelo americano pós-11 de setembro. Ou seja, liberdade vigiada. Repressão ampla, geral e irrestrita, com tolerância zero ao direito do suicídio lento, gradual e seguro. Considero esta a opção a mais inteligente, porque historicamente bem sabemos que o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil. O preço da vida saudável é a eterna vigilância.

Do oeste ao leste, o irônico tabagista ficou impressionado com a tolerância dos europeus.

– Girei o planeta a partir de Berlim, onde é proibido fumar em locais fechados. Locais fechados, ressalte-se, porque os fumódromos são respeitados e mantidos pela limpeza pública. A começar pelo aeroporto, provido de um chiqueirinho legal para fumantes. A princípio me assustei com a convivência pacífica entre viciados e não viciados, porque sempre considerei a Alemanha uma nação civilizada. Agora, pelo cheiro, estou convicto de que os germânicos continuam os bárbaros de sempre, e civilizados somos nós brasileiros. A exemplo da Alemanha, assim foi na França, na Itália e demais nações atrasadas do primeiro mundo. No Chile, cada bar ou restaurante alerta sua clientela com uma placa na porta: “Fumantes” ou “Não fumantes”.

O “globe-trotter” acendeu mais “unzinho” no olho da rua, viciado na ironia:

– Quando desembarquei em São Paulo, saí em disparada para fumar “unzinho” na entrada do aeroporto. Que a vontade era tanta, e até embaixo da marquise é proibido fumar, perguntei a um funcionário se tinha algum “jeitinho”. E tinha: “O senhor vá em frente, lá no fundo tem até cinzeiro, é onde a gente faz que não vê!”. Nesse chiqueirinho do aeroporto tinha um cartaz do filme Coco antes de Chanel. Um belo filme, assisti em Paris. Só que no exterior o cartaz tinha um cigarro. Será que no Brasil tiraram o cigarro do cartaz para cumprir a Lei Antitabaco? Coco Chanel fumava muito e fuma durante todo o filme. O cigarro não a impediu de viver até os 87 anos, em 1971, no Hotel Ritz, em Paris, onde morava.

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O marginal jogou a guimba do cigarro na calçada e se despediu com uma última baforada:

– Se a prefeitura não botar cinzeiros nas ruas, Curitiba vira uma só Caximba. “Pouca saúde, muita saúva, os males do Brasil são”, dizia Mário de Andrade. E Oswald de Andrade respondia:

Dê-me um cigarro / Diz a gramática / Do professor e do aluno / E do mulato sabido / Mas o bom negro e o bom branco / Da nação brasileira / Dizem todos os dias / Deixa disso camarada / Me dá um cigarro.