Que o papa nos perdoe

No calendário da história, os ciclos se desenrolam num espaço de tempo relativo, conforme a leitura de quem faz o registro. Em Curitiba, a década de setenta somou apenas oito anos e avançou seis meses nos anos de oitenta. A década de oito anos teve início em maio de 1972, quando os pedestres ganharam a Rua das Flores, e culminou com a visita do papa, em julho de 1980.

Sou testemunha da década que teve apenas oito anos. No dia 19 de maio de 1972, a Rua das Flores foi entregue aos pedestres, eu estava lá. Antes um limbo provinciano destinado ao inferno urbano de São Paulo, a retirada dos automóveis da Rua XV de Novembro abriu caminho para outras intervenções urbanas, imprimiu na cidade uma cultura engajada no novo e, sobretudo, renovou a auto-estima da população – um sentimento de orgulho pela cidade que, ainda hoje, os mais obtusos atribuem aos efeitos de uma propaganda enganosa.

Ao longo desse ciclo de oito anos, Curitiba tomou o caminho do paraíso, culminando com a bênção de João Paulo II.

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Foi numa semana de muita chuva. Ainda na noite anterior, chovia a cântaros – a palavra é bem apropriada. Na tarde do dia cinco de julho de 1980, quando Karol Wojtyla – o primeiro polaco a ocupar o trono de São Pedro – foi aclamado pela multidão que se espremia no Estádio Couto Pereira, a chuva parou e eu estava lá: vestido com um impermeável amarelo, próprio do serviço de limpeza da Prefeitura, fazíamos parte de voluntários auxiliares do arquiteto Abrão Assad, incumbido de desenhar no centro do gramado a imagem de um gigantesco peixe forrado de flores. Foram dois dias e duas noites de trabalho embaixo de chuva, ao lado dos marceneiros da prefeitura que montavam uma casa polaca, peça por peça, como se fosse um quebra-cabeça. A mesma casa polaca que hoje se encontra no Bosque do Papa.

Nos fundos da casa polaca, foi erguida uma imensa cruz de madeira roliça, com os braços a sustentar uma larga faixa de tecido amarelo que tomava a forma de um M. Os arquitetos Abrão Assad e Fernando Popp estão de prova: alçado pela pá de uma máquina carregadeira, e protegido com os equipamentos de segurança do Corpo de Bombeiros, subi no alto da cruz para ajeitar e dar forma à faixa de pano com a cor do Vaticano.

No estádio Couto Pereira, 60.000 pessoas participaram daquela que foi, digamos, uma audiência ?íntima?, comparada com a missa solene realizada no Centro Cívico.

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Por minha própria conta e risco, testemunha desse tempo e usando das prerrogativas de um cronista, volto a afirmar que a década de setenta teve apenas oito anos e, ao longo desse ciclo, foi quando Curitiba tomou o caminho do paraíso. Com a bênção de Karol Wojtyla e cantando ao João de Deus.

?São demais os perigos dessa vida?, cantava o poeta Vinícius de Moraes na inauguração do Teatro do Paiol. Depois de abençoada, a capital caiu na tentação dos sete pecados capitais: a luxúria nas obras públicas, a soberba da sociedade, a vaidade dos governantes, a gula dos grandes negócios, a avareza dos privilegiados, a ira dos desfavorecidos e, apesar do orgulho dos seus habitantes, quase trinta anos depois só nos resta ajoelhar, confessar os pecados e pedir perdão ao sucessor do polaco Wojtyla, o alemão Joseph Ratzinger, que chega hoje ao Brasil.