Piá de Curitiba

Hoje a festa é dupla: 316 anos de Curitiba, 85 anos de Poty Lazzarotto. Nascidos um para o outro, ele foi feito à semelhança dela. Ou vice-versa. Em 1974, Napoleon Potyguara Lazzarotto esboçou suas memórias do artista quando jovem. Poty só era de poucas palavras quando falava. Quando escrevia, o mestre se revelava.

“No começo era o caos… ou, pelo menos, a bagunça começou antes de tudo o que eu me lembre: e perdura até hoje, para desespero de minha cara metade. Apareceram aí pelos idos de 1927, nos livros de curso primário pertencentes à minha avó (editados em Estrasburgo, Colmar ou em qualquer outro burgo da Alsácia, em 1870 e pico), apareceram uns chapéus e pernas garatujadas sobre as ilustres efígies de Vercingetorix (foi uma dureza aos três anos de idade soletrar o nome do ilustre varão), Napoleón, Tasso, Assurbanipal e outros tantos.

Tudo (repito) começou com a misteriosa banheira (Isaac, meu pai, ajuntava coisas) que nunca viu água dentro; em compensação transbordava de livros e revistas. Tinha Benjamim Costallat ilustrado (com uma porção de páginas em branco no meio do livro, uns pontinhos alinhados como véu diáfano das reticências), mapas de planície de Maratona, estampas de um negócio chamado cataclisma (?) num artigo de Camille Flamarion; um detetive com a cabeça de ovo, aparecendo em capítulos do ‘Eu sei tudo’, com o nome de Hércules de Poirot (poirote mesmo, e não Poarô, que eu não ia esperar para aprender francês).

Enfim, antes de ir para escola, eu sabia mais sobre capacetes, assírios e bigodes galos do que Antônio Houaiss entende de filologia. E haja chapéu, bigodes, pernas e tudo, em cima dos centenários alfarrábios… Uma vez arranquei uma página ilustrada (história de Jonas) de um parente; foi o diabo: pra ‘estudar’ o assunto, me escondi debaixo da cama do parente (que já estava em fúria por causa da história sagrada rasgada), e aí veio o pior. Fui atacado por uma galinha choca, tenho até hoje as marcas das bicadas.

De qualquer modo, o Isaac foi meu primeiro mestre – sabia fundição, entalhação e não se sabe quanto mais e sobretudo gostava de fazer o que fazia. Depois o professor Felix Bianco, o Mickey de cara façanhuda, excelente homem. Aí, numa noite chuvosa, conheci o ‘panhe’ Ficinski, que me falou de ‘claro-escuro’ e de um homem que riscava em metal, chamado Rembrandt van Rijn; aí (repito), na encruzilhada, decido qual dos caminhos.

Os anos passaram, ‘seo’ Ribas (N.R.: Manoel Ribas, que era interventor do Estado e deu uma bolsa para Poty estudar na Escola Nacional de Belas Artes) me despachou para o Rio de Janeiro (sem aviso prévio), o caro Erbo Stenzel me guiou aí pelo Café Gaúcho e Centro Bernadelli; e aí então conheci um magricela (de pernas grossas, sapatos brancos, um coração que não tem mais tamanho) chamado Augusto Rodrigues, que, na inauguração da minha primeira exposição de gravuras, esvaziou o Café Vermelhinho, levou a clientela inteira pro subsolo do Diretório Acadêmico da Escola de Belas Artes, local da mostra, me falando de alguém chamado Caticof (ouvi assim); mais tarde, passado o susto, descobri que se tratava de Kaethe Kollwitz; mas ainda demorei uns anos pra conseguir ver uma reprodução da velhinha.

Dentre os inúmeros amigos, a Carybé não perdoo ter me ensinado a fazer pintura a têmpera com ovos podres, desgraçado…”