O que seria da nossa história se Alexandre Dumas tivesse acompanhado Giuseppe Garibaldi em suas aventuras na América Latina, e aqui ficasse? Como editor, Dumas restaria o endividado de sempre. O escritor iria além da nossa imaginação, considerando-se o retrato que fez do ditador argentino Rosas nas “Memórias de Garibaldi”.

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Quando crianças não tínhamos televisão, tínhamos biblioteca. O muito que conhecíamos da humanidade vinha da leitura. Tenho a impressão de que aprendi a ler com dois brasileiros e dois franceses: Monteiro Lobato (do qual também me considero filho); Jorge Amado (bênção, Zélia Gattai!); Michel Zévaco (“Les Pardaillans”) e Alexandre Dumas (“Os Três Mosqueteiros”).

É por isso que as histórias de Juan Manuel Rosas contadas por Alexandre Dumas, através de Garibaldi, são fascinantes. Pelo menos para aqueles piás devoradores de gibis que, mesmo depois do seriado do Zorro, não dispensavam mais aventuras de capa e espada.

Ontem e hoje os ditadores são todos parecidos, mas bom seria ler a biografia romanceada de um desses caudilhos latino-americanos segundo Michel Zévaco, o jornalista sardo que ficou célebre com as tramas da família Borgia, ou o faro do repórter (hoje seria um expoente do new journalism) Alexandre Dumas ao nos revelar Euzébio, o mulato de estimação do generalíssimo Rosas.

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Todos em Buenos Aires conheciam o mulato Euzébio, que se tornou ainda mais conhecido por ocasião de uma solene recepção em palácio, conta Dumas: “Rosas tivera a ideia de fazer dele o que madame Du Berry, em semelhante ocasião, fizera de seu negro Zamora. Vestido como um governador, Euzébio recebeu as homenagens das autoridades em lugar de seu amo”.

Para o ditador, amigo é feito para o humilhar com gargalhadas: “Apesar da amizade que dedicava ao seu mulato, certa feita Rosas rendeu-se ao caprichoso desejo de envolver o descomunal amigo numa farsa grosseira, como todas as farsas por ele inventadas. Inventou que acabara de ser descoberta uma conspiração que tentava apunhalá-lo (apenas isso!) e da qual Euzébio seria o cabeça. Euzébio foi preso, de nada valendo os seus protestos de devotamento. Rosas possuía os seus próprios juízos, que de modo algum se preocupavam se o réu era culpado ou não”. O ditador fez as acusações, eles julgaram e condenaram o capacho à pena de morte. O mulato de estimação suportou as torturas, confessou-se e foi levado ao local de execução, onde já o esperava o carrasco: “Só então, a súbitas, como um deus da tragédia antiga, surgiu Rosas, anunciando a Euzébio que, sua filha Manuelita havendo-se apaixonado pelo mulato e desejando desposá-lo, ele concedia-lhe a graça”.

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Manuelita, arrisca Dumas, foi uma bela mulher que morreu virgem. Era muito caluniada, compreensivelmente: “Foi acusada de ter herdado os instintos cruéis de seu pai e de ter, como a filha do Papa Borgia, esquecido o amor filial em favor de um outro, mais terno e menos cristão”.

Conhecemos o tipo, o típico demagogo latino-americano: “Guindado ao súpero poder, Rosas deu início à vindita contra as classes superiores (hoje a vítima seria a tal de mídia), que o haviam por tanto tempo aviltado”. Na presença dos homens mais aristocráticos e mais elegantes de Buenos Aires, ele constantemente aparecia “ vestido em sua jaleca, ou sem gravata, e oferecia bailes aos quais convidava os boleeiros, os magarefes e até mesmo os presidiários alforriados da cidade. Certa feita, ele abriu o baile dançando com uma escrava, enquanto Manuelita dançava com um gaúcho”.

“Aquele que não está comigo está contra mim”, este era o lema do ditador, ou de qualquer ditador. E quem ousasse desagradá-lo, “se acharia despossuído do direito à liberdade, à propriedade, à vida e à honra”.

Para seu governo, Rosas era o cara!