Palavra de quem sabe (1)

Curitibano da Rua Prudente de Morais, Ney Augusto Nascimento foi convocado pela Presidência da República, via UFPR, e pela Associação Brasileira de Mecânica de Solos e Engenharia Geotécnica (ABMS) para auxiliar nas análises das causas da tragédia em Santa Catarina. A bordo de helicóptero da FAB, sobrevoou as áreas mais atingidas, até desembarcar no Morro do Baú.

Engenheiro civil pela UFPR, mestre e PhD em Mecânica de Solos pela Universidade do Novo México (EUA) com bolsa do Capes, Ney Augusto Nascimento é professor titular do curso de Engenharia Civil da Universidade Federal do Paraná, onde há sete anos coordena a pós-graduação em Construção Civil. Miúdo, sempre agitado, estudioso compulsivo de sua área de atividades, tanto pode estar a uma quadra de casa, analisando o solo da calçada que cedeu, quanto na Jordânia, na Colômbia, na Alemanha, no Japão.

Ou em Ilhota, a cidade do Vale do Itajaí que quase desapareceu do mapa, no rastro das enchentes em Santa Catarina. É disso que ele vai falar aqui, hoje e em mais dois capítulos (terça e quarta-feira).

O lado “bom” da tragédia

À primeira vista, essa expressão pode soar incoerente, sem propósito ou até mesmo desnaturada. Como se pode, já num título, achar que tragédia implica em existência de lado bom?

Pois bem, do ponto de vista de um sujeito otimista, talvez possamos concluir que realmente a dificuldade, a falta de quase tudo do cotidiano, a perda de entes queridos e o espanto perante forças incomensuráveis e inesperadas da natureza possam também caracterizar coisas boas, úteis, saudáveis e exemplares.

O exemplo, geograficamente próximo, é dos acidentes ocorridos há alguns dias em várias localidades do Estado de Santa Catarina.

Considere-se a topografia difícil, com muitos morros, vales estreitos e água em abundância convergindo nervosamente aos baixios (e certamente ao Rio Itajaí-Açu, o principal canal regional de drenagem natural ao mar). Adicione-se a presença, mesmo esporádica, de muitas famílias vivendo em pequenas comunidades de subsistência basicamente rural. São tipicamente descendentes de alemães e italianos, que se estabeleceram em muitos desses vales interioranos além, é claro, do vale principal, no qual as maiores cidades se desenvolveram. Some-se também uma geologia e geotecnia complexas (a geologia é de caráter mais geral, considera o globo terrestre ou partes dele nas suas análises; a geotecnia é particular, localizada, focando a engenharia civil), caracterizando presença de solo superficial pouco espesso, transições intensas e camadas rochosas diversas em seguida. Prosseguindo nessa soma de parcelas, há pelo menos mais dois fatos relevantes: a intensa área de taludes, por vezes abrangendo toda uma face de morro, desbastada de sua mata original e refeita com plantações de bananeiras, bem menos favoráveis à estabilidade do conjunto; e o costume de se utilizar amiúde cortes verticais (ou quase) de pés de morro, comumente nas edificações a ponto de não se poder passar a pé no espaço deixado entre ambos.

Esse cenário belo pela própria natureza, maravilhoso num sobrevôo de baixa altitude feito por helicóptero, certamente tem os seus segredos mais íntimos. Assim como na economia, quando inventaram o gatilho que deveria disparar um alerta para ocasional escalada de preços talvez fora de controle, também na natureza há traiçoeiras circunstâncias que podem ser acionadas e, literalmente, mostrar as garras do mais poderoso. Uma delas é denominada chuva, precipitação, água em quantidade. Outra é vibração, sismo, terremoto. E se as duas atuarem concomitantemente? Altíssima probabilidade de tragédia, voltando ao título, sabendo-se que se a probabilidade é unitária, temos então a certeza. Mas há certeza nesta vida, em qualquer atividade que se possa imaginar para a passagem da humanidade ao longo dos tempos? Somente uma, que é a da morte de cada um de nós, meros viventes.

Então, somados os componentes da singela equação, tentativamente descrita, o mesmo exuberante cenário pode se tornar palco de tragédia.