(De Lisboa) Irmãos por parte dos necessitados, a diferença entre São Francisco e Santo Antônio eram os seus ouvintes. São Francisco pregava para os animais, Santo Antônio para os peixes. Um falava com os passarinhos, outro falava com os peixinhos.

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Nascido em Lisboa, tendo Portugal tantos peixes e tanto mar (“Ó mar salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal!”, versava Fernando Pessoa), Santo Antoninho reunia os seus peixinhos e os orientava: “Robalinho, robalão, sirva-se com batatas ao murro! Garoupa, garoupeta, venha com sal e pimenta! Linguado, assim ou assado, junte-se aos bons. Polvo, que o povo te prefere à lagareira! Pescadinha, teu lugar é na cozinha! Sardinhas, venham do jeito que vierem, venham suprir a fome dos humildes!”. E assim falava Antônio ao seu cardume, até que um dia caiu em suas orações um peixão alienígena. “Quem és tu, irmão do mar?”, perguntou. “Meu nome é gadus morhua, mas podes me chamar de bacalhau. Encontro-me aqui perdido, venho de águas geladas em busca de abrigo”.

“Aqui sempre terás um bom abrigo, irmão!”, e puxou aquele peixe pesado e lento para junto de si. Ao observar a brancura e maciez de sua carne branca, a mais alva dos peixes de carne branca, o santo lisboeta teve uma epifania: “Serás o peixe que vai mudar o mundo. Depois de salgado e seco ao sol, com 80% de proteína concentrada, dez entre dez navegantes atravessarão os mares graças ao teu sustento. E para a glória do Senhor, serás a estrela guia da Semana Santa”. Santo Antônio batizou o gadus morhua com vinho e o convidou a nadar ao lado de Deus: “Vai, descobre a América e o caminho das Índias. Dobra o Cabo da Boa Esperança, mas leva contigo somente o teu corpo, pois tua cabeça há de ficar para sempre em Portugal”, teria dito Santo Antônio.

Quem parte e reparte fica com a melhor parte, foi assim que o santo de Lisboa reservou à cozinha portuguesa uma iguaria rara. Se poucos conhecem a cabeça do bacalhau, é porque dele tudo se aproveita. A cabeça é mais saborosa que o corpo, especialmente a garganta, chamada de língua, e os pequenos discos de carne nas bochechas. Se o lombo era o filet mignon, a cabeça do bacalhau era o que restava aos pescadores portugueses depois do trabalho árduo de pescar e salgar aquele pão dos pobres recolhido nos mares do norte.

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Antes um dos peixinhos de Santo Antoninho, hoje o bacalhau não mais é encontrado na mesa dos necessitados. Nestes tempos de crise, sumiu a cabeça e ficou o rabo. E haja óleo de fígado de bacalhau! Cada vez mais somos levados a crer que um governo honesto continua tão raro quanto a cabeça de um bacalhau.

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Amanhã, um cronista brasileiro em busca da cabeça do bacalhau.