Como dizia o Barão de Itararé, sempre há algo no ar além dos aviões de carreira. Especialmente em época de eleições. Nesta temporada preferida das velhas águias, quando elas voltam a fazer seus voos rasantes na ingenuidade do eleitor, vale recordar uma crônica da escritora Rachel de Queiróz, publicada nos tempos de glória da revista O Cruzeiro.     

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No céu claro passaram roncando dois enormes aviões. Pelo feitio ou pela pintura os rapazes conheceram que era da FAB. E um deles, que ouvira o rádio do jipe, explicou: “É o marechal, que vai ao Cariri fazer propaganda eleitoral”.

Lembrou-me a minha velha mestra de música, Dona Elvira Pinho, abolicionista e republicana histórica, mulher de rígida virtude particular e cívica. Uma de suas alunas era filha do governador e vinha para as aulas no carro oficial. E D. Elvira interpelava a garota, em plena classe: “Como vai o nosso automóvel? Você tem agradecido aqui às meninas o empréstimo do carro para você passear? Sim, porque tanto o automóvel como o motorista, a gasolina, tudo é nosso – nós que pagamos!”.

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A menina ficava encabulada ou furiosa, não sei, e Dona Elvira, abandonando a teoria musical, dava uma aula de boa ética republicana. Que tudo pertence ao povo, pois quem paga é o povo.

Os governantes que gastam conseguem o dinheiro dos contribuintes, estão usurpando essas regalias – aliás, a própria palavra está dizendo: regalia – privilégio do rei! República não tem rei e, assim, os governantes republicanos não deviam ter palácios para as suas famílias nem carros oficiais para passear os meninos, nem comida e luxo à custa do povo.

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Ninguém se lembra mais da origem do dinheiro com que se custeia o luxo dos poderosos. Se eles pensassem, talvez recuassem envergonhados, e devolvessem o seu a seu dono. Mas eles não se lembram. Vêm apenas o dinheiro fácil, abundante, bom de gastar. Dizem que se um não gastar, outro gasta.

E, acima de tudo, convencem-se de que eles próprios e os seus é que representam o Estado, e que emprego da fazenda pública em regalias pessoais para os que encarnam o Estado é tão legítimo quanto os gastos em ordenados de professoras, em remédios para os ambulatórios.

Aqueles dois aviões, gastando material, gasolina e pessoal, tudo pago pelo povo, para que um candidato faça a sua propaganda, sei que é uma gota de água na torrente dos gastos indevidos de dinheiros públicos, mas são um símbolo, ou uma amostra de como anda completamente desvirtuado aquilo que se pode chamar o pacto de governo, feito entre o povo e os seus líderes.

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Esta crônica de Rachel de Queiroz foi escrita em novembro de 1959. Meio século depois, os aviões não são os mesmos. Mas continuam voando com os mesmos de sempre.