As manchetes dos jornais gritam que a Grande Curitiba registra 3,5 assassinatos por dia e que a violência afasta os curitibanos da região central, conforme pesquisa da Associação Comercial do Paraná. Se permitem a ironia, a ACP jogou dinheiro fora com a sondagem: bastaria um telefonema. Qualquer citadino diria o mesmo óbvio ululante.

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A fábula é clássica e pode ser adaptada para esta campanha eleitoral: de tanto perder para os gatunos, os ratinhos candidatos a prefeito se reúnem num estúdio de televisão para debater qual a melhor solução para combater a violência. Depois de muito palavrório, chegam ao consenso que é preciso, de alguma forma, forçar o gatuno a fazer barulho ao se aproximar e assim dar tempo aos ratos de se proteger. A proposta é aprovada por unanimidade. Todos os candidatos concordam que o melhor é colocar um guizo no pescoço do bichano. O plano é perfeito, mas só emperra com uma pergunta que nenhum candidato ousa responder: quem vai botar o guizo no pescoço do gato? Se botar o guizo no pescoço do gatuno já é temerário, quem é o corajoso que vai botar outro guizo no pescoço da autoridade responsável pela segurança pública? E quem, de fato, é o responsável pela segurança pública?

É óbvio ululante que o prefeito Beto Richa vai tentar botar o guizo no pescoço do governador Roberto Requião e os demais candidatos vão tentar botar o guizo no prefeito, é óbvio ululante. Enquanto isso, nessa briga de gato e rato, é melhor esquecer o guizo e se trancar em casa.

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Óbvio ululante é uma expressão criada e popularizada pelo escritor Nelson Rodrigues, também título de um dos seus livros. É óbvio ululante que a população de Curitiba abandonou a rua e está refugiada no shopping. Perdemos a batalha para os bandidos, enfim, e entregamos o território ao inimigo. Na pesquisa da Associação Comercial, os comerciantes do Centro reconhecem o óbvio ululante: 36% já foram assaltados; 42% não registram queixa; 67% adotaram algum plano de segurança; 79% consideram que alguma rua do Centro é insegura.

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Com 1.727.010 (estimativa IBGE/2004), é óbvio ululante que Curitiba não é mais aquela vila de 1820 que o naturalista Auguste de Saint-Hilaire conheceu. Muito bem instalado, o capitão-mor encarregou um guarda para atender e receber ordens do visitante. Depois de conversar com o miliciano, e admirar todo aquele sossego, Saint-Hilaire amavelmente o dispensou: “Não podia existir nada mais encantador do que a posição da chácara onde eu me achava alojado. Situada numa colina a pouca distância de Curitiba (seria no Alto da Glória?), ela domina toda a planície onde a vila está construída” (…) “Passei nove dias em Curitiba, cumulado de gentilezas pelo capitão-mor e pelos principais moradores. Não há dúvida de que desde que cheguei ao Brasil, em nenhum outro lugar eu tinha recebido melhor acolhida”.

Saint-Hilaire deu boa-noite às corujas e foi dormir de portas e janelas abertas: “Fazia muito tempo que eu não sentia tanto calor quanto em Curitiba (março)”.

Com números de 1838, fornecidos por Daniel Pedro Müller, assim Saint-Hilaire contabilizou a população da Vila Nossa Senhora da Luz dos Pinhais: Brancos dos dois sexos: 9.806 / Mulatos livres: 4.119 / Negros livres: 289 / Mulatos escravos: 704 / Negros escravos: 1.237 / Escravos: 1.941 / Indivíduos livres: 14.214 / Total: 16.155.

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Analisando os números de ontem e de hoje, podemos concluir que Curitiba retrocedeu. Em 1838, tínhamos 1.941 escravos e 14.214 indivíduos livres. Em 2008, o quadro se inverteu: hoje temos uma minoria absoluta de indivíduos livres (bandidos com total liberdade de ir e vir, donos das esquinas, proprietários dos bairros, com o privilégio de circular no Centro à noite) e quase dois milhões de escravos.

É óbvio ululante: trancafiados em modernas senzalas (também chamadas de condomínios) com grades de ferro, somos escravos dos bandidos.