O trabalho que dá

Muitos perguntam sobre ao trabalho que dá escrever uma crônica por dia: “De onde você tira tanto assunto?”. Difícil explicar os desígnios de um autodidata, “ignorante por conta própria”, no dizer do poeta Mário Quintana.
Mais fácil é comparar o jornalista ao beque de futebol de várzea que, com a bola sobrando na pequena área aos 48 do segundo tempo, não tem outra alternativa se não obedecer a ordem do técnico: “Bola pro mato, que o jogo é de campeonato!”. Ou seja, com ou sem inspiração, o jornal tem encontro marcado com o leitor.

Nos meus tempos de cartunista, quando tinha que desenhar uma charge por dia, meu filho Pedro chegou a me perguntar: “Ainda te pagam pra fazer isso?”. A gente ganhava pouco, mas se divertia muito. Se ainda desenhasse diariamente, hoje seria grato à Dilma Rousseff. Por falta de uma ideia melhor, desde sempre o que vem em socorro do chargista é o dragão da inflação.

“A felicidade é uma suave falta de assunto”, escreveu Rubem Braga, justamente a quem muitos recorrem na falta de insumos para encher a linguiça do dia-a-dia: “Braga escrevia ainda melhor quando não sabia sobre o que escrever” – dizia o poeta Manuel Bandeira.

Dos tantos que já escreveram sobre a falta de assunto, lembro de Manoel Carlos Karam. Em uma de suas “Crônicas de Alhures do Sul”, assim o jornalista e escritor cumpriu com sua obrigação de ofício:

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“O trabalho que dá escrever uma crônica. Eu acordo muito cedo pra começar o trabalho. Bebo um café sem açúcar. Verifico se chegou e-mail, respondo. Leio as notícias na internet. Ponho um disco de jazz. Abro a porta pro cachorro ir ao banheiro no quintal. Andou dando goiaba no caquizeiro lá de casa. Pode ter sido obra do cachorro, mas isso é outra história. Bebo mais um café sem açúcar. Verifico se algum e-mail não ficou sem resposta. Ligo o rádio. Gosto de saber a situação dos aeroportos. Acredito que um dia vou ter que sair às pressas, mas isso é outra história. Preparo um sanduíche, separo uma fruta, deixo ambos à mão para a hora da vontade. Prometo que vou reduzir o café enquanto tomo mais um. Sem açúcar, mas isso é outra história. O cachorro pula em mim, ele quer brincar. Lanço a bolinha, ele apanha e retorna. Já pensei em chamar o cachorro de bumerangue, mas isso é outra história. E assim por diante. Viu o trabalho que dá?”.