O povo no olho da rua

Curitiba tem lá os seus mais variados paradoxos. A começar pelo Carnaval, uma contradição feita tradição. Outro paradoxo é a cidade ser conhecida em todo mundo como modelo urbano voltado à ocupação das ruas e espaços públicos pelos pedestres, enquanto forças ocultas cada vez mais dispensam tratamento privilegiado aos automóveis.

Outro dos paradoxos entre a teoria e a prática é quanto à ocupação das ruas. Enquanto tenta induzir a população a ocupar diuturnamente a Rua das Flores, a Rua Riachuelo e outros espaços desmerecidos da cidade, a Prefeitura ainda tem a coragem de cobrar taxas de ocupação das calçadas – quando deveria não só isentar, como também deveria incentivar que bares e restaurantes botem a freguesia de porta a fora. Normatizar e não cobrar!

Antes de recuar perante protestos, a Prefeitura imaginava (sim, é muita imaginação) cobrar de R$ 10 a R$ 25 por m¦ construído sobre o recuo da calçada – variando de acordo com a região do estabelecimento. Essa cobrança seria mensal. No exemplo mais caro, um imóvel com 70 m¦ de recuo pagaria R$ 1.750 mensais – R$ 21 mil ao ano. Do lado oposto da calçada da Prefeitura, a proposta dos representantes dos bares é de R$ 30 a R$ 75 por m¦ para bares. Mas a cobrança seria anual. Assim, no exemplo acima, o custo seria de R$ 5.250 por ano.

Assim como a praça é do povo como o céu é do condor – no versejar do poeta Castro Alves -, as ruas são de propriedade gratuita dos pedestres e quem deveria pagar pelo uso são as indústrias automobilísticas que ocupam os espaços da cidade gratuitamente. Se a intenção de cobrar pelo uso das calçadas da rua D. Pedro II (por exemplo, um restaurante com 70 m¦ de recuo pagaria R$ 45 por dia, o preço é uma refeição), cada carro deveria pagar pelo menos um centavo por ano por ocupar a rua e poluir a cidade.

A mesa na calçada é o balcão de um bar a céu aberto. Nos conta Jaime Lerner – com sua velha mania de gastar a sola do sapato -, a ocupação das ruas e das calçadas é a própria sensação de “pertencimento”. É quando a cidade mostra toda sua generosidade: “Um balcão é bom em qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. Desde o antigo armazém, aos sofisticados bares nas grandes cidades. Em Berlim, no Gendarmenmarkt, um balcão com rodinhas se estica até a calçada para que a conversa se estenda até lá fora. É um balcão conversível como um carro esporte”.

Conforme a Prefeitura,o objetivo da cobrança é repassar os valores arrecadados para o Fundo de Recuperação de Calçadas. A ideia da Secretaria de Urbanismo seria “regularizar uma prática [a construção sobre o recuo da calçada] que caiu no gosto do curitibano por conta do clima e repassar essa arrecadação para melhorias em prol da população”.

Apesar das boas intenções, não há de ser esta verba que vai recuperar as calçadas de Curitiba – cujo maior exemplo é a “via sacra” da Saldanha Marinho. Dispensa-se esse “fundinho sola de sapato”, troca-se pela Rua São Francisco com circulação exclusiva de pedestres.

Paradoxo dos paradoxos é a Rua 24 Horas.

Funcionando no regime de meio expediente e com algumas lojas fechadas, a rua que antes era uma atração turística de modernidade, hoje atrai os forasteiros como uma das dez maiores bizarrices de Capital Ecológica.

A ressurreição da Rua 24 Horas não é tão difícil a ponto de se pedir a intervenção divina. Bastaria a Urbs, como concessionária, abrir uma nova licitação para a ocupação, com novo espírito: isenção da taxa de uso para as melhores propostas de revitalização. Quem levar mais gente, leva! A mesma norma para a ocupação das calçadas. Importante não é o dízimo arrecadado; fundamental é botar o povo no olho da rua.