O lobisomem da bicicleta

No Bigorrilho, não somente o Mato dos Enforcados provocava calafrios. Bairro mal-assombrado de Curitiba (só perdendo para o cemitério municipal com sua Loura Fantasma e outras almas penadas), no breu daqueles matos e barrocas até os valentes se borravam com o lobisomem que andava de bicicleta.

Quase um século depois, o lobisomem do Bigorrilho lembra o popular Oil Man que trafega pelas ruas de Curitiba de sunga, besuntado em óleo e pedalando uma bicicleta. A semelhança não passa da bicicleta. Nos tempos do boitatá, o Bigorrilho inspirava a imaginação com histórias de arrepiar o cabelo, como conta o livro “Bigorrilho, construção de um espaço urbano”, de Maria Luiza Gonçalves Baracho e Marcelo Saldanha Sutil. As ribanceiras sob a neblina gelada eram cenários perfeitos para histórias do outro mundo.

As histórias do lobisomem, de fazer os meninos passarinheiros se esconder embaixo da cama, sacudiam o Bar e Armazém do Candinho. Numa sexta-feira, “entre taças de vinho e histórias de fantasmas (ao invés de jogos, animados por Carmelo, que naquele dia se ausentara) Manequinho narrou seu encontro com o lobisomem”:

“Era numa sexta-feira, o relógio da Santa Casa batia meia-noite. Como tava escuro, tratei logo de acender o candeeiro da lanterna que trazia. Segurei-a numa mão e com a outra apertei o rosário e taquei o pé na estrada. […] Foi no chegar perto da chácara do Toscani que o fato aconteceu! Soprava um vento frio e fino, a lua se escondia por trás do mato e ali, no gramado da verdureira, o lobisomem apareceu. Vinha de quatro pé. Entonces, eu parei arrepiado e fiquei sem poder fugir, porque as pernas tremiam. O bruto chegou na porteira e passou por ela sem precisar abrir; como cachorro e, roncando, veio para o meu lado. Com a tremedeira quis fazer o sinal da cruz e rezar o credo, mas não pude, e o tal se achegou. Vi bem que era ele, com os olhos a sair faíscas, os dentes vermelhos em brasa, as orelhas grandes e peludas como as de um burro, tendo no pescoço uma grossa corrente, o lobisomem falou: “Manequinho! Se um dia você contá pra alguém que me viu desse jeito, eu te mato!”

Eu não respondi. Tinha a língua pregada e os cabelos estavam em pé. O fulano desceu pela barroca que dá para o campo do Paulo e desapareceu, acuado pela cachorrada do Toscani.

Naquela sexta-feira no Armazém do Candinho, os destemidos do Bigorrilho resolveram que o lobisomem seria apanhado. E, depois de uma “camaçada de laço”, seria amarrado em um palanque diante do boteco. Da turma, só não estava mesmo o Carmelo. Manequinho foi para casa buscar o laço. Na volta, até meia-noite ele bebeu muita cachaça. Os polacos beberam muita vodka e os italianos muito vinho. Foi uma farra de valentes.

– Vou dar tanto nesse lobisomem que ele vai virar polenta!

Na escuridão, Manequinho dirigia a ação: “Vocês dois ficam perto da casa do Toscani. O Ariosto e o Gijo ficam perto da cerca da verdureira!”

Estavam acomodados no matagal quando ouviram a palavra de ordem: “Olhem!” Pela estrada, em ziguezague, vinha uma luz e um estranho gemido compassado se juntava ao tilintar de uma campainha.
“Agora!” O que se ouviu foi um baque surdo, “gritos, socos, pontapés, pragas, vidros quebrados, luz apagada, latas e arames torcidos”.

Quando clareou o dia, junto à cerca da verdureira foi encontrada uma bicicleta quebrada, pedaços de roupas e sinais de luta. O delegado levou os valentes para a cadeia, com o Manequinho na frente.

Indignado, envolto em ataduras e esparadrapos, Carmelo esbravejava:

– Porca miséria! Eu vinha gemendo a pedalar na subida, quando esses brutas béstias caíram em cima de mim, pensando que eu era o lobisomem!