O humor e o horror

Dois terroristas entraram na redação do jornal de humor Charlie Hebdo e fuzilaram covardemente doze pessoas, entre eles três dos mais celebrados cartunistas franceses. Foi quase o mesmo que entrar no Museu D‘orsay e destruir com uma bomba um punhado de obras dos impressionistas. Bem comparando, seria o mesmo que entrar na redação do Pasquim, no início da década de 1970, e matar Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e Henfil, além de Sérgio Augusto, Paulo Francis – todos eles admiradores do Wolinski, um dos maiores cartunistas de todos os tempos, assassinado em plena redação.

É o horror!

Nascido na Tunísia e parisiense desde os 12 anos de idade, Wolinski influenciou toda uma geração de cartunistas com o seu traço caligráfico, libertário e libertino. Assim como Picasso, que alforriou as artes visuais, Wolinski tirou o gesso das mãos e mentes dos cartunistas em todo o mundo. Inclusive nos países árabes.

A intolerância não é um privilégio de radicais islâmicos. Em 1963, o jornal Última Hora, de São Paulo, publicou uma charge que, de certa forma, foi uma das sementes da revolução que viria no ano seguinte. Foi num fim de semana nervoso. Naquele domingo, o Santos de Pelé iria decidir o campeonato paulista. Mesmo assim, dias antes os craques foram rezar pela vitória no Santuário de Nossa Senhora Aparecida. O que provocou a Última Hora a estampar na sua primeira página o tamanho da fé santista. Para ilustrar a manchete, o editor Álvaro Paes Leme encomendou uma ilustração ao chargista Otávio, com os jogadores ajoelhados e rezando a Nossa Senhora Aparecida. Seria até uma charge edificante, não fosse um detalhe: Otávio carregou o traço nos lábios, deixando a virgem com o beiço de uma bela negra. Uma santa beiçuda, mas o desenho não resultou desrespeitoso. Mesmo porque, a imagem de Nossa Senhora de Aparecida é negra, com o paradoxo de possuir feições e traços de um branco.

Quando a edição dominical da Última Hora chegou às bancas do interior paulista, já na noite de sábado os vigários e devotos radicais passaram a telefonar e dirigir insultos aos editores, que imediatamente trocaram a ilustração na edição da capital.

Poucos foram os que viram a charge de Otávio da primeira edição. Entretanto, foi o que bastou para correr o boato de que o jornal comunista que apoiava Jango Goulart teria estampado uma Nossa Senhora Aparecida com os pés de bode, as mãos do capeta e as feições de uma negra devassa.

O jornal quase foi destruído, carros de reportagem foram incendiados e as senhoras marchadeiras saíram às ruas de São Paulo pedindo o pescoço dos ímpios de Jango Goulart.

Em 2006, doze charges publicadas por um jornal dinamarquês provocaram a ira do povo islâmico. Os chargistas satirizaram o profeta Maomé e o Islã ameaçou passar os engraçadinhos no fio da espada. Para o islamismo, é proibida a representação de Alá e seus profetas em imagens. Agora que a história se repete com a intolerância levada ao extremo – com o Charlie Hebdo enfrentando com as armas do humor a barbárie religiosa – mais do que nunca é preciso recordar a reação da imprensa francesa naqueles idos.

Com o argumento de que um país secular como a França não deve se submeter aos preceitos de nenhuma religião, o diário France Soir publicou em uma das suas edições da semana as doze charges, com uma manchete de primeira página: “Sim, temos o direito de caricaturar Deus”. Logo abaixo, uma charge na qual aparecem Buda e os deuses cristão e judeu ao lado de Maomé. Todos sentados em uma nuvem que paira sobre a Terra. O Deus cristão diz ao profeta muçulmano: “Não reclame, Maomé. Todos nós já fomos caricaturados”.