O século XX ainda não terminou. Está nos deixando de mansinho, se despede um pouquinho de cada vez. Até parece o cantor Sílvio Caldas, que dizia adeus à carreira uma vez por mês. Parte do século XX nos deixou agora, o jornalista Francisco Cunha Pereira Filho.

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Dr. Francisco era um paranista. Mas não um paranista tricolor, lembra em boa hora o escritor Ernani Buchmann, com um adendo: o termo paranista foi criado pelo ex-governador Bento Munhoz da Rocha Netto. Pode não ter sido Bento o autor, há uma pequena controvérsia na Academia Paranaense de Letras. Se assim não for, assim fica sendo, porque assim afirmava Dr. Francisco Cunha Pereira Filho, o maior dos paranistas.

Ontem, Dia de São José, Bento Munhoz da Rocha Netto deve ter organizado uma alvorada festiva para receber o senhor todo poderoso da Gazeta do Povo, com direito à fanfarra do maestro Mossurunga, foguetório e um café-da-manhã posto à moda da Lapa.

Ao receber o abraço de Anfrísio Siqueira, eterno presidente da Boca Maldita, em seguida Dr. Francisco deve ter um dado um passo e, olhando para os sapatos do amigo, deve ter dito com toda sua elegância:

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– Presidente, vejo que o senhor continua o mesmo de sempre. Inclusive com as meias brancas!

Depois de ter lançado o livro Onde me doem os ossos, Ernani Buchmann recebeu um telefonema de Dr. Francisco.

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– Gostei muito do seu livro! Especialmente da crônica O país das meias brancas. O senhor tem razão (senhor era uma palavra que Francisco guardava no bolsinho do paletó de seus bem cortados ternos), uma das paixões de Curitiba são as meias brancas.

Na crônica, Ernani pergunta o motivo: “Dá-se que em Curitiba as lojas costumam vender estoques completos de meias brancas masculinas. Não pense o leitor tratar-se de meias grossas, indicadas para algum esporte, como as usadas nas quadras de tênis e nas academias de ginástica. Essas têm saída normal, corriqueira. O mistério é a paixão curitibana pelas meias brancas a compor trajes sociais. É comum notarmos distintos cidadãos, elegantes em seus ternos de apropriados botões, gravatas em acordo com as exigências da moda e, a cobrir-lhes os tornozelos, graciosas meias brancas de fino tecido”.

Que se saiba, Dr. Francisco nunca usou meias brancas. Talvez, num vacilo da mocidade. Porque o jornalista sempre primou pela elegância. Elegante em seus ternos de apropriados botões, elegante no trato pessoal. Era um cavalheiro. E um cavalheiro bonito, de uma beleza de causar inveja, um dos últimos que abriam a porta do automóvel para as senhoras.

Ousadia essa minha de escrever a respeito (e em respeito) de Dr. Francisco, depois que os mestres escreveram na edição de ontem da Gazeta do Povo: Francisco Camargo, José Carlos Fernandes, Roberto Couto, Vinícius Dias, e tiro o meu chapéu para Rosy de Sá Cardoso.

Mesmo assim, não posso deixar de dar meu depoimento acerca daquele homem que não usava meias brancas. No começo dos anos 70s trabalhei na Gazeta do Povo. Iniciei com o relançamento do jornal Diário da Tarde, junto com amigos que ainda conservamos. Entre eles, os jornalistas Celso Nascimento, Walter Schmidt e Toninho Vaz, hoje escritor. Era ilustrador e diagramador da primeira página da Gazeta do Povo. Diariamente, ao lado do secretário Daquino Borges, fechávamos a capa do dia e uma última missão era sagrada: levar para a aprovação de Dr. Francisco, estivesse ele onde estivesse. Junto com a capa, a coluna do Dino Almeida e o editorial, quando uma vírgula poderia ofender a ditadura.

Tempos estranhos, aqueles. Ainda hoje a Gazeta da Povo tem a cicatriz de um jornal conservador, dirigido por um homem que usava meias brancas. Só que muitos esquecem, e fazem questão de esquecer, que naqueles anos de chumbo a Gazeta do Povo era um porto seguro para os comunistas de Curitiba. Com Dr. Francisco a esquerda se abrigava, ganhava o pão negado pelos generais.

Dr. Francisco não usava meias brancas.