O fantasma da memória

Na semana passada fiquei cinco dias longe do computador. Há quem diga que alguns dias de férias servem para recarregar as baterias. Ao contrário, depois de um tempo parados ficamos é com a bateria descarregada. Para voltar a funcionar, só mesmo no tranco.

Músicos e desenhistas sabem: uma semana de folga na praia é suficiente para enferrujar os dedos. Para os datilógrafos o efeito é o mesmo, com um agravante para os que ainda precisam catar e juntar palavras: a fiação da memória volta comprometida com o ócio.

Quando meninos, a mãe nos dizia que o agrião era um inigualável fortificante para a memória. A salada nunca me convenceu, conforme atestavam minhas notas de matemática. Agora com a larga soma dos anos, a qualquer lapso de memória me curvo com a culpa de ter comido muito pouco agrião.

Mas do que era mesmo que estava falando? Ah, sim: da volta ao batente. Nesses retornos preguiçosos, quando a vida real se apresenta ainda desfocada, o que nos salva é algum livro posto à parte para essas emergências. “Meu último suspiro”, a autobiografia de Luiz Buñuel, por exemplo. A propósito desses pequenos lapsos de memória, o cineasta espanhol abre suas memórias de vida confessando que lhe chega a angustiar quando não consegue lembrar-se de pequenas coisas. À medida que os anos passam, a memória antes desdenhada torna-se preciosa: “Chegamos às vezes a mergulhar numa espécie de raiva ao procurar em vão por uma palavra que conhecemos, que está na ponta da língua e se recusa obstinadamente a vir à tona”.

Buñuel, que na velhice ficou surdo e com a visão tão deficiente que não conseguia mais assistir a seus próprios filmes, nos convence de que podemos até perder outros sentidos, menos a memória: “Uma vida sem memória não seria vida, assim como a inteligência sem possibilidade de expressão não seria inteligência. Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nossa ação, nosso sentimento. Sem ela não somos nada”.

A sensação atroz da perda de memória remete Luis Buñuel (1900/1983) aos últimos anos de vida de sua mãe: “Quando 
ia visitá-la, em Zaragoza, onde morava com meus irmãos, às vezes lhe dávamos uma revista, que folheava minuciosamente da primeira à última página. Em seguida, pegávamos de volta a revista de suas mãos para oferecer outra, que na realidade era a mesma. Ela voltava a folhear com o mesmo interesse”. 

Apesar de comer bastante agrião, os últimos anos de minha mãe foram semelhantes. Ela nos recebia com a festa de sempre, providenciava acomodações, conferia se tinha cobertas suficientes, fazia o cardápio para os dias seguintes, mas logo em seguida perguntava os nomes daqueles que haviam chegado, como se os estivesse vendo pela primeira vez. Graças a Deus, ainda me lembro do que minha mãe sempre dizia: “Quando não tiver nenhum livro pra ler, pelo menos faça palavras cruzadas”.