Santa Catarina é um estado abençoado por Deus. Mesmo pequeno, o estado nasceu com largos glúteos sentados no mar. Ao contrário do Paraná, de litoral mínimo. Graças à topografia, plena de vales, serras, morros e morrotes, lá a reforma agrária foi feita pela própria natureza. Ao contrário do Paraná, de imensas planícies e grandes proprietários.

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Em Santa Catarina, com suas praias, o Jardim do Éden é serra baixo. No Paraná, com a sua agricultura, a Terra da Promissão é serra acima. Para muitos (e não são poucos), nesse aspecto do bel prazer, Santa Catarina ganhou alguns mimos divinos a mais.

Em compensação, não se sabe por que, São Pedro nunca foi lá muito amistoso com os vizinhos catarinas. Se não, vejamos o que escreveu ontem Sérgio da Costa Ramos, o grande cronista de Florianópolis:

“O Dilúvio, velha lenda babilônica adotada pela Bíblia, durou apenas 40 dias e 40 noites, enquanto a humanidade morria afogada. Este outro dilúvio, que desaba sobre a Ilha e sobre Santa Catarina há 80 dias e 80 noites, talvez não tenha a produção cinematográfica de Os Dez Mandamentos, ou o orçamento de um Cecil B. De Mille, o magnata de Hollywood. Em compensação, nunca houve um filme tão real”.

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Nascido em Nova Trento (SC), presenciei desde que me entendo por gente algumas das grandes inundações daqueles rios que correm apertados entre as montanhas. Na tenra idade, as primeiras cheias foram na minha cidade natal: um enclave italiano no fim do Vale do Rio Tijucas. Já na idade escolar (primário e ginásio) testemunhei grandes enchentes no Vale do Rio Itajaí Mirim, em Brusque, e no Vale do Rio Itajaí-Açu, em Blumenau. Para o leitor se situar, Brusque é vizinha 30 minutos de Nova Trento; Blumenau um pouco mais distante, uma hora. Isso hoje, de carro. Naqueles tempos idos, pela estrada de barro sinuosa, o percurso era uma grande viagem.

Até onde a memória alcança, para os meninos as inundações eram uma diversão. Alheios à angústia e ao sofrimento dos adultos, conferíamos com uma vara, metro a metro, o rio subindo. E, quando a chuva parava, atravessávamos as ruas nadando, boiando em troncos e pneus, cercávamos com rede os bagres que se perdiam na correnteza. Confesso que poderia avançar muitos parágrafos contando das molecagens dos dias de enchente, enquanto os vales sumiam num mar de lama vermelha. Constrangido, só não vou mais adiante porque o escritor Roberto Gomes, nascido em Blumenau, já relatou isso e muito mais numa de suas brilhantes crônicas.

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Depois de muitos anos, agora uma das nossas diversões é lembrar que chamávamos a cidade de Brusque de “Capital Catarinense dos Barrancos”. Cercada de morros por todos os lados, dizíamos que os brusquenses tinham como lazer nos fins de semana cavar os morros para fazer barrancos com uma casa embaixo. Um barranco mais bonito que o outro, e um vizinho do outro, parece que Brusque tem um campeonato municipal de escavadores de morros.

Ironia à parte, a expansão da cidade é o que levou a população a construir em áreas de risco. E o resultado, nos vales de Santa Catarina, são as atuais reportagens da tragédia. Não a tragédia da natureza, a tragédia da natureza do homem.

Até 1983, quando das grandes enchentes nos vales, os burgueses habitavam em áreas planas, mais baixas, e os operários ocupavam as encostas dos morros. Hoje, estes continuam correndo os riscos, aqueles construíram mansões no alto das montanhas.

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Em Curitiba, onde só a periferia conhece a dor dos catarinas, os donativos para socorrer as vítimas dos temporais em Santa Catarina estão sendo arrecadados pelo Circolo Trentino, na Rua Desembargador Westphalen, 15, no centro, no prédio que faz esquina com a Praça Zacarias, das 8h às 19h. Telefone (41) 3222-9033.