O anormal

Observadores da cena brasileira não sabem qual foi a entrevista mais importante deste início de ano: seria o desabafo de Jarbas Vasconcelos, denunciando a corrupção do PMDB, ou as palavras de Pelé para a revista Veja desta semana. Fico com o Pelé, pois tudo que o Jarbas revelou até o poste da esquina conhece.

Melhor do que uma entrevista com Pelé, só mesmo uma entrevista com Edson Arantes do Nascimento. Pois, como se sabe, o Edson quando abre a boca só perde para o Lula no quesito “bola fora”. Quanto ao Pelé, sua majestade está isento de qualquer julgamento, tratando-se de uma criatura acima da normalidade.

Sob Obama e Jesus Cristo, Pelé marcou de letra: “Mandei uma mensagem de parabéns. Até já recebi um e-mail dele dizendo que precisa do Brasil e que deseja trabalhar junto com a gente. Quando o Obama estiver mais calmo, sem essa pressão de bolsa, passo lá para tomar um café, como fiz com o Kennedy, com o Nixon e com o Clinton. Agora, outro dia me disseram que o Obama ficou mais conhecido que o Pelé. Aí, brinquei: ‘Por enquanto. Em quatro anos, ele pode até ficar mais famoso, mas eu continuarei a ser rei’. Já ouvi até que o Pelé é mais famoso que Jesus Cristo”.

Ao dar conselhos aos meninos, Pelé deu um drible majestático no Robinho: “Daria a ele o conselho que ouvia do meu pai: ‘Deus te deu o talento de graça. Cuide dele’. O que fez diferença no meu caso foram a educação e a base familiar. Por isso, o Pelé nunca esteve envolvido em escândalos. Os garotos das novas gerações não contam com estrutura emocional e já começam a jogar ganhando muito dinheiro. O Kaká deveria ser um modelo para eles”.

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Pelé só não é muito lembrado na Argentina, onde é considerado um anormal. Isso mesmo, anormal. Nem mais, nem menos, como nos contou o cronista esportivo Carneiro Neto.

No final da década de 70, Carneiro Neto e João de Pasquale (o célebre Pasquale do Passeio Público) foram passar uma lua-de-mel “al mare”, num cruzeiro até Buenos Aires. Por supuesto, com suas respectivas esposas. Embarcaram em Santos, passaram por Montevidéu e foram tomar uns “tragos largos” no Café Tortoni (Avenida Mayo, 825/9). Para abrir os trabalhos, pediram “Séptimo Regimento” (wísque, jerez, conhaque) e elas escolheram “Mi Bella Dama” (Pisco, licor de banana, leche e congaque). No principal, veio “Lomo al plato” e “Jamon cocido e matambre com ensalata rusa”. Quando estavam no café especial (“Cubano”: café, bacardi, crema y canela), um argentino da mesa ao lado pediu licença aos casais e perguntou de onde eles eram, no Brasil.

– Somos de Curitiba, Paraná.

– Muy bien, Curitiba. Una ciudad muy hermosa!

O gringo, então, aproximou a cadeira e desandou a falar sobre futebol brasileiro. Sabia tudo e mais um pouco sobre craques canarinhos. Acerca de Tostão, conhecia em detalhes o problema ocular do craque na Copa de 70. Sabia que Gérson fumava na concentração e gostava de levar vantagem em tudo.O Pasquale ficou impressionado: o gringo era uma enciclopédia do futebol brasileiro. Debulhou não só a escalação do América do Rio de Janeiro, como também perguntou por onde andava o craque Zé Roberto, artilheiro do Coxa: “Quanto mais borracho, melhor jogava”. Enfim, lembrou de uma quase centena de craques brasileiros. Carneiro Neto ficou intrigado: de um por um, o portenho fazia comentários. Só não citava o nome de Pelé.

Na altura do terceiro cafezinho (“Mazagran”: café frio, Ron, limón y hielo), Carneiro não se aguentou mais e perguntou, um tanto quanto incomodado:

– O senhor lembrou de todos grandes nomes do futebol brasileiro. Meus parabéns, sua memória é fantástica.No entanto só não citou um nome: Pelé! Por quê?

O homem de paletó e gravata, muito elegante, levantou da cadeira e respondeu enquanto enrolava o cachecol no pescoço:

– Señor, yo estoy hablando de personas normales. Pelé no es normal. Es un anormal!