O anarquista pelado

Seria possível um homem viver mais de dois anos embrenhado nos pinheirais dos Campos Gerais, se alimentado de pinhões, ervas e raízes, com temperaturas abaixo de zero, e completamente pelado?

Nestes últimos dias, o inverno ultrapassou o território de sua alçada e foi torturar os viventes do Rio de Janeiro, que registrou na madrugada da última terça-feira a menor temperatura mínima do ano. Os termômetros marcaram inacreditáveis 8,7ºC.

Enquanto isso, no Brasil Meridional, com o termômetro da Rua das Flores marcando exato zero grau, veio na memória uma das mais impressionantes histórias relatadas sobre a Colônia Cecília, a experiência anarquista implantada no Paraná, em Palmeira, pelo italiano Giovanni Rossi. Pode ser apenas uma lenda, mas o que se conta é que apenas um dos 150 italianos oriundos do norte da Itália viveu a experiência anarquista de forma radical.

Ele era um ?ragioniere?, na Itália é um contador, o encarregado da contabilidade comercial de uma firma. Nascido na Lombardia, era o perfeito janota milanês do final do século 19, todo engomado dentro de um figurino, com pouco mais que um metro e meio, magérrimo e a pele branca de neve.

O ?ragioniere? não estava na lista de embarque para a América do Sul, na véspera do navio mercante Città di Roma zarpar de Gênova, em 20 de fevereiro de 1890. Na noite anterior, enquanto Giovani Rossi jantava numa cantina – quem sabe um penne al pesto -, o franzino contador se aproximou do líder anarquista e se apresentou voluntário para a aventura abaixo do Equador.

– Dottore Rossi, quando eu chegar no Brasil posso fazer o que eu quiser?

Em abril os 150 anarquistas chegaram ao planalto dos Campos Gerais para viver o ideal de liberdade, o amor livre, a inexistência da propriedade privada, a vida sem regra.

Era outono, enquanto o resto do grupo tratava de acomodar as tralhas, o ?ragioniere? foi procurar Giovanni Rossi. Ainda com a mala de papelão numa das mãos, ele repetiu a pergunta anteriormente feita no cais de Gênova:

– Dottore Rossi, posso fazer o que eu quiser?

Olhos nos olhos de Giovanni Rossi, o ?ragioniere? iniciou um lento striptease: jogou a mala de papelão ao chão, deixou cair o paletó de linho branco e começou a se livrar do resto das roupas, peça por peça, até ficar completamente pelado. Em seguida, se despediu do líder – Addio, dottore! – e caminhou em direção ao campo. Passo a passo, a bunda branca do ?ragioniere? foi sumindo de vista, até desaparecer por entre um capão de pinheiros.

Por mais de dois anos não se soube o paradeiro do ?ragioniere?, até correr na vila da Palmeira o boato de que um lobisomem estava roubando pães de forno quando, depois de assados, eram postos para esfriar no aparador da janela das cozinhas. O lobisomem não atacava o galinheiro, tinha predileção por pão de milho e várias casas da região se viram desfalcadas no café-da- manhã. Uma expedição de captura foi então formada. Depois de dias e noites na tocaia, o lobisomem caiu na armadilha daquele perfume de pão saído do forno.

Musculoso e bronzeado, pelado e peludo da cabeça aos pés, era ele. Do corpo mirrado que se despediu de Giovanni Rossi e se embrenhou nos pinheirais, a única lembrança visível do ?ragioniere? era a bunda, que continuava branca.