Nascido em Nova Trento, terra da Santa Paulina, sou do tempo em que uma criança, quando nascia, era jogada na parede: se grudasse seria pedreiro; se fosse ao chão seria padre. Quando me jogaram na parede, me estatelei no chão, ganhei um galo na cabeça e fui para o seminário.

continua após a publicidade

No primeiro ano de ginásio tínhamos latim, francês, português, matemática, ciências, história, geografia, desenho, música e educação física. Afora técnicas agrícolas, que horticultura era prática obrigatória.Um martírio! E ai de quem não cumprisse as lições, condenado a ficar encostado num dos pilares do sombrio corredor, decorando a bíblia. Em latim. Ou as fábulas de Esopo. Também em latim. Um martírio.

?Tudo isso depois da missa das seis da manhã, quando era oficiada a nossa missa de cada dia, em latim, antes do pão e café nosso de cada dia, quando o estômago roncava também em latim. Aos domingos, eram duas as missas matinais: a missa das seis e a missa das dez. Essas missas dominicais nem sempre eram em latim, graças a Deus. Domingo sim, domingo não, eram em francês, ou italiano. Para refrescar a memória, no final da tarde tínhamos uma hora de futebol, com cinco minutos extracurriculares para roubar frutas no pomar.

Menino levado, não sendo digno do nome do Senhor, fui pagar meus pecados num colégio agrícola, onde a rotina e a comida intragável eram as mesmas. Com exceção do latinório e da biblioteca eclesiástica, que de vingança troquei pela biblioteca herética: “O crime do Padre Amaro”, de Eça de Queirós; “Iracema”, a virgem dos lábios de mel de José de Alencar; “A carne”, de Júlio Ribeiro; “Eu e o governador”, de Adelaide Carraro, todas as “teúdas e manteúdas” de Jorge Amado.

continua após a publicidade

Confesso que do latinório não me sobrou uma ave-maria. Do Pai-nosso, sabia inteiro apenas o faz de conta, mais ou menos assim: “Paternossoquernicheri, santifiquerinometuo…”, e segue a missa. É bem verdade que minhas orações, em latim labial, eram melhores do que as de muitos políticos, que do Pai-nossosó sabem até o “venha a nós” (advenia tregnum tuum).

Foram tantas as missas, comunhões, novenas e ladainhas, que já gastei até o meu latim gutural. Do latinório ainda na memória, alguma coisa é de boa valia: nas eleições dos papas, aos que perguntavam o que significava “habemus papam”, respondia na lata: temos papa. E ainda corrigia: papa com M no final. Do latim que não morreu, foi o que me sobrou. Além de uma vaga lembrança de não saber o que estava perdendo.

continua após a publicidade

Em suma (olha o latim aí, gente!), se eu tivesse nascido na Argentina, quem sabe, poderia ter sido papa.