No outro lado dos olhos

As aparências não apenas enganam como também podem esconder, por trás de belos olhos, temperamentos e propósitos assustadores. Por três vezes seguidas Salvador Dali tentou conhecer Sigmund Freud. Cada vez que o pintor surrealista telefonava para a casa do fundador da psicanálise, em Viena, era informado de ele estaria em viagem, em tratamento de saúde, enfim, sempre em vão.

Conta o escritor Craig Brown, no divertidíssimo livro “Um por Um – 101 encontros extraordinários”, que em junho de 1938 Dali estava num restaurante de Paris, empanturrando-se com um prato de escargots, quando deu um berro: “O crânio de Freud é um caramujo!”. Essa revelação levou o surrealista a reforçar suas tentativas de encontrar o seu herói. Por meio de um milionário mecenas, ele entrou em contato com o escritor Stefan Zweig, amigo íntimo de Freud.

Zweig escreveu três cartas a Freud em nome de Dali, sugerindo que o pintor faça um retrato dele e explicando que Dali é “o único pintor de gênio em nossa época” e “o mais grato e fiel discípulo de suas ideias entre os artistas”. Depois da terceira carta de Zweig, a reunião foi marcada para Londres. Sigmund Freud estava com 82 anos, morrendo de câncer na mandíbula e quase surdo – por isso pouco falou com Dali que, em todo o caso, não falava alemão nem inglês. Mas o gênio espanhol não se deixou abalar pelo silêncio de Freud: “Nós nos devoramos um ao outro com os olhos”, declarou o pintor.

Conforme o combinado, o artista mostrou ao cientista a sua mais recente pintura “Metamorfose de Narciso”, o que levou Freud a comentar com Zweig no dia seguinte: “Até agora, eu estava inclinado a considerar que todos os surrealistas – que aparentemente adotaram-me como seu santo padroeiro – eram 100% idiotas. Esse jovem espanhol, com seus olhos ingênuos e fanáticos e sua técnica sem dúvida perfeita, sugeriu-me uma avaliação diferente. Na verdade, seria muito interessante explorar analiticamente o desenvolvimento de uma pintura como essa…”.

Num breve momento em que Freud conversava com Zweig e mais um amigo no lado oposto da sala, Dali sacou de seu caderno e fez, às escondidas, um croqui da cabeça de Freud. O resultado guardava semelhança tanto com o psicanalista quanto com um caramujo.

Dali recordaria o encontro como uma das experiências mais importantes de sua vida. Sempre se gabava de ter forçado o fundador da psicanálise a reconsiderar totalmente a sua visão sobre o surrealismo.

E qual a opinião de Sigmund Freud sobre Salvador Dali?

Enquanto o pintor – com os olhos ardentes de empolgação – desenhava o grande psicanalista com a cara de escargot, Freud inclinou-se para Zweig e sussurrou em alemão:

– Esse rapaz parece um fanático. Se todos os espanhóis forem assim, não é de se admirar que haja uma guerra civil na Espanha!