Nhundiaquara, nascente do Paraná

Sempre que o Rio Nhundiaquara transborda, o rolar das águas na Serra do Mar tira o sono daquelas aves raras que ainda se preocupam com a história do Paraná. Especialmente com a memória de Rocha Pombo, o pai da Universidade Federal do Paraná, cuja obra quase se perdeu um dia nas águas do Nhundiaquara.

Quando estudante de Letras, a professora Cassiana Lacerda foi avisada de que uma enchente estava inundando de lama a Casa de Rocha Pombo, em Morretes. Não a casa onde o historiador nasceu, na estrada da Nhanha. Mas uma casa à beira do Nhundiaquara que havia sido restaurada para abrigar a obra do historiador, por iniciativa do então governador Paulo Pimentel.

Ao chegar no local, Cassiana encontrou o acervo de Rocha Pombo jogado na calçada. Numa esquina, “El espirutu Municipal em los tiempos de colonia”, obra escrita em espanhol; na outra esquina o “Dicionário de sinônimos da Língua portuguesa”; no outro lado da rua, “A História da América”; adiante a “História do Rio Grande do Norte”; acolá a “História Universal”. Alhures, a “História do Paraná”. E, na barranca do rio, os dez volumes da caudalosa “História do Brasil”.

Quando a estudante de Letras começou a recolher da lama os restos da obra de Rocha Pombo, um senhor a convidou para entrar:

– Moça, voltou a chover! Vem comigo, vamos assistir à minha televisão de passarinho.

Cassiana nunca mais esqueceu a televisão de passarinho. Na janela que se abria para o Nhundiaquara, cheia de bananas penduradas, os passarinhos de Morretes faziam o espetáculo.

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Contei este episódio no meu discurso de posse na Academia Paranaense de Letras (justamente na Cadeira Número Um, de Rocha Pombo), para lembrar que, muito anos depois, Cassiana Lacerda foi recebida pelo presidente da Academia Brasileira de Letras.

Autorizada a acessar o arquivo de Emílio de Menezes (outro paranaense como Rocha Pombo que, eleito, também não chegou a assumir sua cadeira na ABL), a professora doutora se deparou com o triste espetáculo: em ambos os arquivos, apenas as cartas de Emílio de Menezes e de Rocha Pombo dirigidas ao presidente da ABL, propondo suas candidaturas. Quanto aos demais acadêmicos, o que ela viu? Em seus arquivos, rico acervo documental e na biblioteca, inúmeras edições de seus livros.

Mais uma vez, Cassiana deparou-se com o Nhundiaquara sobre os originais de Rocha Pombo e Emílio de Menezes. Enquanto os acadêmicos do resto do Brasil eram prestigiados pelos governos de seus estados de origem, os dois paranaenses lá estavam sem haver merecido qualquer iniciativa no sentido de edição e divulgação de suas obras.

Graças a Cassiana Lacerda, com a edição e lançamento solene na Academia Brasileira de Letras da “Obra Reunida” de Emílio de Menezes e o “Paraná no Centenário”, de Rocha Pombo, os paranaenses recuperaram o espaço reservado aos dois acadêmicos. Ainda que, no caso de Rocha Pombo, quase tudo esteja por ser feito.

15 de março de 2011. Cassiana passa os olhos nas imagens da devastação, e conclui: “Rocha Pombo ainda aguarda que baixem as águas do rio Nhundiaquara!”.