O assunto já perdeu o prazo de validade, em se tratando de pauta jornalística, mas censura não tem data de carência. Lendo o último livro da escritora Nélida Piñon, lá pelas tantas me lembrei do vereador de União da Vitória que recentemente mandou retirar obras literárias da biblioteca de uma escola estadual.

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O que fizeram com os estudantes de União da Vitória e com os livros de Cristóvão Tezza (em Santa Catarina só faltaram queimar o conterrâneo em praça pública) é a pedagogia da intolerância.

Não sejamos intolerantes, portanto, com os juízes do espírito: Senhor, eles não sabem o que fazem, muito menos o que leem! Vamos relevar tamanha estreiteza e dar-lhes mais uma chance de reabilitação, substituindo uma das obras censuradas pela biografia de Nélida Piñon, Coração andarilho.

Biografia? O livro não é bem isso, é muito mais, como bem escreveu (e como escreve bem!) a primeira mulher a presidir a Academia Brasileira de Letras: “Decido eu mesma engendrar lendas e episódios que me são atribuídos. Sempre tendo como desculpa a condição de escritora, a quem é dado o privilégio de inventar sem sofrer sanções morais”.

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Sem sanções morais, este foi o legado espiritual que a família espanhola passou à menina Nélida (por pura casualidade, anagrama do querido avô Daniel). E se os juízes do espírito quiserem se redimir da intolerância, que leiam em voz alta aos estudantes estes trechos do Coração andarilho, na página 121.

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“(…) Em certo almoço de domingo, os pais decidiram que me deviam franquear a leitura. O livro que quisesse ler estaria ao meu alcance.

A oferta significando que estaria livre para escolher.

E isso dito, o pai dirigiu-se à livraria Freitas Bastos (…). Na loja falando com o gerente, o pai propôs-lhe a abertura de uma conta a ser quitada no último dia útil do mês, mediante a qual a filha de 12 anos estaria autorizada a retirar os livros da sua escolha. (…) Eu observava timidamente as prateleiras, quando o sr. Oliveira me atendeu. (…) De extrema gentileza, socorreu-me vendo minha indecisão entre as duas brochuras que praticamente retinha contra o peito.”

“Aos poucos, tornou-se mentor e amigo. Ensinava-me a percorrer as prateleiras e o que podia encontrar nelas. Como considerar a procedência do livro e do autor, quantas vezes insinuando-me que certas literaturas luziam mais que outras, ao menos eram mais aplaudidas, chamavam a atenção internacional. Segundo ele, fazia diferença nascer na França, por exemplo, ou no universo saxão. Mas que selecionasse o livro julgado adequado ao meu sonho de leitora. Uma vez que desse posse a um volume, teria a chave do mundo, abriria portas, pularia cancelas, seria dona de intensas emoções. (….).”

“Sem pretender ser pedagogo, ou oráculo que reparte enigmas só pelo gosto de decifrá-los, Oliveira orientava-me. Ao mesmo tempo, retirava a rede de proteção para eu escolher que bagagem me conviria no futuro (…).”

“Ao retornar de São Lourenço, em certo verão, mencionei-lhe o nome Balzac, que ouvira no Parque das Águas, de uma senhora com postura arrogante, esforçando-se em marcar a diferença cultural havida entre nós. Ao elogiar o autor francês, ela advertiu-me, diante de minha perplexidade, que tal leitura, além de imprópria para meninas, requeria solidez intelectual. Afinal, Balzac, sismógrafo da França, ocupara-se dos seres conturbados, interesseiros, que lançavam mão de qualquer recurso no seu afã de ascensão social.”

“Oliveira testou meu interesse. Enfatizou que o autor francês haveria de ser para mim um paradigma inaugural. (…). Eu levava os livros para casa, relatava ao Sr. Oliveira que efeito me causaram, e o pai, indo ao balcão, quitava o débito no fim do mês.

Um acordo feliz que me introduziu a um universo cujas portas iam-se escancarando à medida que eu avançava na caminhada.”