Hoje, a Mega Sena vai sortear 33 milhões de reais. Vale sonhar, sonhei. Até pensei alinhavar algumas letras antecipando uma vida de milionário. Desisti, após lembrar de uma crônica escrita entre 1957 e 1959, pelo falecido jornalista e boêmio Renato Muniz Ribas. Renatão – como os amigos o tratavam – assinava uma coluna diária no jornal Tribuna do Paraná – Ecos da Noite – com o pseudônimo de Reinaldo Egas. Em 1982, Nireu Teixeira Júnior e Márcia Krieger compilaram uma seleção de suas crônicas, inclusa esta que transcrevo abaixo.

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?Marcharei tranqüilamente pela noite adentro, irei à procura de um cambista, e farei minha fezinha no jogo. Indagarei onde se paga o prêmio, quanto vale a milhar acertada, e depois seguirei calmo, na espera de uma fortuna que tanto vive sob os meus sonhos. Uns quererão saber onde aplicarei o dinheiro. Outros me perguntarão se o capital irá para a indústria ou comércio. Verei risos, aqueles risos amarelos dos que nunca me deram importância por causa desta pobreza de quatrocentos anos lapeanos, de interiorano bem pacato. Esses amigos banais trarão filhos penteados e contarão casos de dolorosa tragédia a ver se conseguem um pouco do meu prêmio. Sereno, calmo e frio, assistirei a tudo isso, a todos esses acontecimentos banais, normais, que já foram transformados em contos. Então, olharei as vantagens enormes que vêm dessa mudança brusca de condição material. Eu era aquele rapaz magro, que bem poderia ter aproveitado o físico para ser poeta ou cantor de tango. Eu era aquele rapaz que por ter dito coisas verdadeiras, por haver cantado serenatas, levei um balde de água suspeita no terno novo, na madrugada de inverno, a mando de um pai inimigo. Eu era um fazedor de poesias e croniquetas pelos bares da noite, que virou lobisomem frente muitos olhos da noite. Mas, depois da milhar acertada eu só serei uma coisa: ?Aquele que acertou em cheio e enriqueceu da noite para o dia?. Não é título muito honroso, mas é bem melhor que este apelido de boêmio, que este fantasma ?Egas? que eu carrego pelas esquinas notívagas. Na minha nova condição de vida terei vantagens e desvantagens. Serei convidado por casais novos, terei que trocar de alfaiate, não comprarei roupa à prestação, deixarei o Jovino para entrar nas salas de grandes rodas. Talvez me citem na coluna social, e eu passe a figurar como um dos mais ?bem?, com cabelo lustroso e camisa de seda. Nos primeiros dias não me acostumarei a falar sobre os maus banqueiros, sobre fazendas de café no norte do Estado. Mas, em compensação, terei tempo para conjugar o verbo ?investir?, num tom novo de voz, num tom de voz que somente o nosso grupo, o grupo ?bem?, sabe empregar. A sorte anda assim, na garupa de um cavalo qualquer. Estou preparado para receber a importância estipulada, calma e serenamente, e quando tudo estiver efetivado, sereno também em torno de mim, sentarei para provar um uísque puro, escocês, que o dono da ?boite?, por trás de um sorriso de dentadura postiça, me entregará frisando bem que aquilo não é para qualquer um. Dormirei meu primeiro sono de milionário, pensando nos que ficaram onde eu estava. Então, novamente sonharei com a milhar certeira, sem ser preciso que o cambista sorteie suas fichas para o palpite de apostas. Meu dia chegará.?

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Apesar da diferença de idade, ganhei a amizade de Renato Muniz Ribas, e a honra de varar noites com Reinaldo Egas. Se ainda cá estivesse, Renatão teria escrito o prefácio do Botecário, o livro que estarei relançando na noite de amanhã no Bar Ao Distinto Cavalheiro.

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