Menina M.

Dos sinistros anos de chumbo, mais um mistério retorna. Apesar da ligeira faxina nos porões da ditadura, casos de desaparecidos políticos e das vítimas da tortura ainda
não foram totalmente revelados. Seria um deles o estranho caso de uma menina encontrada na Lapa, como se tivesse surgido do nada. Ou do inferno.

O caso da Menina M. está recapitulado no livro A Pedra do Caminho, autobiografia da escritora Maria Thereza Lacerda que será lançada no próximo 8 de junho no Centro Paranaense de Cultura e, no dia 7 de julho, nas Livrarias Curitiba do Shopping Estação. O resultado das vendas será doado ao Asilo São Vicente de Paulo.

Autora de títulos saborosos (Café com Mistura, tão gostoso que ganhou edição da Codecri, do Pasquim), agora Maria Thereza foi buscar nas memórias o significado para a vida e para a morte. Precisamente o que não significava muito em 1970, tempo em que veio do breu uma menina de calça faroeste, blusa banlon e short com etiqueta da Casa Boneca do Rio de Janeiro. O relato de Thereza:

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Em um final de tarde, quando a velha igreja do lugar estava cheia de fiéis assistindo uma novena, uma menina de menos de cinco anos surgiu na praça. Chorava e estava sozinha. O habitante do lugar que a encontrou mostrou-a a todos os que saíam da igreja, fez chamadas através da rádio local e acabou entregando-a, provisoriamente, a uma enfermeira, que a abrigou, com conhecimento da polícia. Interrogada, a menina dizia:

– Ele quebrou o rádio, a cadeira e fez um buraco no chão.

Quanto ao seu nome, respondia apenas:

– Mom… mom…

Foi encaminhada para uma escola de freiras que atendia crianças órfãs. No decorrer dos meses surgiram falsas pistas.

Naquele verão, meses após o seu aparecimento na cidade, eu a conheci e as freiras pediram que examinássemos as roupas que ela vestia no dia em que foi encontrada. Elas tudo faziam para tentar esclarecer a procedência da menina. Como eu a senti afetivamente carente, convidei-a para passar algumas horas conosco. Ela se aninhava nos meus braços de maneira comovente. Os jornalistas a levaram para Curitiba, onde foi examinada por psicanalistas e até hipnotizada. Todos os que tentaram adotá-la acabaram devolvendo-a, sob a alegação de que era uma “menina difícil”. A revista O Cruzeiro, a principal do País, providenciou a viagem de M. ao Rio, onde foi fotografada e apareceu na capa, em 1.º de setembro de 1971. Portanto, sua foto foi exposta em todas as bancas, de norte a sul do Brasil. Como sempre, só surgiram pessoas que queriam aparecer na imprensa. O tempo passou, ela cresceu, mas as características da raça eslava continuavam em seu rosto. Segundo observações, demonstrava boa educação, comportava-se bem à mesa, escovava bem os dentes e era evidente que pertencia, ao menos, à classe média.

Nenhuma revelação. A menina foi educada pelas freiras e hoje está casada e morando em algum lugar do sul do País. Segundo recomendações de psicanalistas e psicólogos, seu trauma era tão intenso, que qualquer revelação poderia levá-la à loucura.

O segredo de M. morrerá com ela. Guardo a revista com a foto daquela menina, que me olha sem que eu possa fazer nada por ela.

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Para desvendar o mistério da Menina M., Maria Thereza Lacerda pensou seriamente em pesquisar os porões da ditadura. Leu tudo o que foi revelado pelos presos políticos, porque ficou evidente que a Menina M. assistiu à morte da mãe e talvez, um dos carrascos, sem coragem de matar a criança, a tenha abandonado na Lapa, terra natal da família Lacerda.

Depois de tantas pedras pelo caminho, a escritora ainda se pergunta: onde estariam os pais e seus algozes? O crime aconteceu no esconderijo da família? Parentes que a reconheceram na capa da revista O Cruzeiro não ousaram aparecer?

Apesar da secreta esperança de restituir a Menina M. à sua família, Maria Thereza Lacerda renunciou ao projeto frente a uma persistente dúvida: “Mais uma vez, quem sabe, escapei de ser morta?”.