Memórias de bordel (2)

 

Sobretudo porque hoje é primeiro de abril, é preciso separar a mentira do lapso de memória, aquele pequeno acidente que o tempo volta e meia nos causa, como o que deve ter ocorrido com o ator Ary Fontoura ao ser entrevistado por Jô Soares.

Na madrugada de quinta-feira passada, Ary Fontoura nos revelou que no início de carreira em Curitiba, quando cantava em restaurantes onde se ouvia mais os talheres do que o propriamente a música, foi convidado para cantar em bordéis.

Na dúvida entre a profissão de ator e cantor, recordou o curitibaníssimo Doutor Pomposo, “um dia estava cantando num restaurante, quando uma senhora muito simpática sentada numa mesa me mandou um recado para que depois que eu terminasse de cantar fosse conversar com ela. Fui lá. Era a dona Otília, uma senhora muito distinta que era dona de uma cadeia de bordéis no Paraná”.

Disse Theodor Adorno que “a arte é uma magia que liberta a mentira de ser verdadeira”. Ary Fontoura contou sua curta carreira como cantor de bordéis com tanta magia que apenas os longevos de boa memória observaram que a cafetina da rede de bordéis não poderia ser a estimada e humilde Otília, proprietária de uma famosa casa de tolerância na rua Marechal Deodoro.

Nos fundos do Colégio Santa Maria e vizinha da também lendária Casa da Dinorá, personagem de Dalton Trevisan, a Casa da Otília passava longe do que na época se chamava de boate, salão para dançar, escutar música ao vivo e beber com as damas da noite.

Dona Otília era dona de bordel, ou “rendez-vous”, como me conta um veterano músico: “As moças ficavam sentadas nas cadeiras e os fregueses chegavam, ficavam olhando e escolhiam a mulher. O preço era tabelado”.

De tão acanhado, o “rendez-vous” da Otília não tinha banheiro, lembram os contemporâneos da cafetina: “Tinha um fogão grande na cozinha, onde a Otília ficava sentada. Sempre ficava sentada na cozinha. Era uma senhora de idade. Matrona, bonachona. Ela ficava sentada lá e um panelaço de alumínio fervendo em cima do fogão a lenha, cheio de água. Para as mulheres pegarem a água com a jarra de esmalte. Aí o homem acertava com a mulher, acertava o preço e outros detalhes e vamos lá: aí ela já pegava a água quente e entregava aquela jarra saindo fumaça. A mulher saia com a jarra na frente, saindo fumaça. E o freguês atrás. Parecia um trem. Era a Maria Fumaça. A moça na frente e o freguês atrás, atravessando o salão. Todas elas se orgulhavam daquele desfile, porque a Maria Fumaça queria mostrar para todo mundo que a noite já estava garantida. No dia seguinte não iria faltar dinheiro em casa”.

Ary Fontoura deve ter sido contratado por uma outra Otília, por uma outra Dinorá, pela Maria Japonesa, pela Maria Bibelôt, pela Maria Sem Calça, pela Maria Bigoduda ou até pela Maria Batalhão. Não importa a Maria, o importante é que Ary Fontoura não esqueceu a lição: “Na zona eu aprendi que a vida fácil não é tão fácil assim. Tem um aspecto humano que no futuro viria a interferir no meu trabalho como ator”.