Mãe coragem

Solidariedade. Esta é a palavra para Fani Lerner. Solidária com os desvalidos, solidária com os iguais perante o infortúnio. Em março de 2007, a brava mulher concedeu um longo depoimento às jornalistas
Beth Klein e Maí Nascimento Mendonça. Com a ternura de sempre, franqueou o espírito para falar sobre o câncer que a abateu.

Solidária e generosa, Fani consolava ao telefone as pessoas com câncer, doava medicamento e, sem nunca perder o humor, mandava “cuidar da cabeça”. Na entrevista, fluida e sincera, Fani só não contou o que os mais íntimos contam agora: ao alentar os seus iguais perante o infortúnio, não revelava sua própria condição. O que segue é o exemplo da mãe coragem. Com medo, sim, mas sem nunca fugir à luta.

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Continuo montada no cavalo brabo. Acho que tenho bastante energia, mas vou ser bem franca, não sei de onde a tiro. Quando eu fiquei doente, as pessoas se preocuparam mais com a minha cabeça, que não aguentasse, e eu aguentei. Anos de terapia, medicação antidepressiva mesmo, não só para a doença. Um lugar comum da doença é que, na verdade, a gente também muda muito, não é? Muda muito, não tem como não mudar.

E muda nesse sentido. Um dia desses até comentei com meu médico: “agora que estou redondinha eu tinha que ter câncer?”. Agora é que eu sei da importância de muitas coisas que eu não sabia. Que a gente fica bela quando não precisa, não é? Não sei explicar. É a valorização da vida, porque muitas pessoas que têm câncer têm essa reação. Primeiro você tem que cair na real, que a vida é uma incógnita. Se você conseguir pensar nisso… é difícil… que você está viva aqui e daqui a meia hora não, então você dá uma chance para você, não é? É doloroso, não é fácil. Tenho uma guilhotina aqui o tempo inteiro.

Eu não sei se é com todos, mas o meu medo é o final. Eu digo que a palavra “terminal” me deixa em pânico. Eu acho que é medo de morrer, medo de saber que vou morrer. Mas a gente cria um mecanismo de defesa que… afasta, não é? Vou, vou, vou. Um dia.

É a primeira vez que estou dizendo isso, mas eu… ajudo muito as pessoas com câncer, me ligam, dou medicamento, mando cuidar da cabeça, tomar antidepressivo, não ter medo de remédio. Mas muitas vezes me choca. Não tem nada a ver comigo, é minha reação interna. É medo. Porque muitas vezes estou sendo corajosa para o outro, mas estou com muito medo.

Só que eu resolvi, com terapia, com ajuda e com a minha cabeça que não é dos outros que a gente recebe tudo, não é? tentar pensar assim: todo mundo vai morrer, vai morrer um dia, eu nem sei se vou morrer de câncer. Mas isso é um trabalho… longo, de muita força. Agora, tem dias em que eu fico apavorada. Dependência dá medo. Mas o meu medo é que eu não posso me enganar.

Meu medo é que, quando eu estiver no fim, não tenha força. Eu sou antenada com remédio, com notícia, com tudo. A frase do escritor Victor Hugo: “Quando a gente não observa os lobos, prejudica os carneiros”.
O que eu aprendi de melhor foi com a minha mãe, com aquelas mulheres que falavam na loja.

E na energia eu acredito. O que mais gosto de fazer agora é ler, porque tenho muito que descansar. Já fiz 50 quimioterapias. Então eu canso, eu fico muito cansada.

Eu sou muito bagunceira, se não estou sozinha não fico quieta, porque converso, falo, me meto. Então tenho que ficar no meu quarto, fechada, para descansar. Tenho lido muito e, por sorte, é uma das coisas que mais gosto. Não quero me viciar, mas não consigo, pego um livro bom, outro que fala de sofrimento, de solidão… Por isso é que li o da Nora Ephron, entre uns e outros, porque é muito engraçado.

Mas é difícil, pra mim é muito difícil, até meu médico perguntou outro dia: “mas por que você está sempre pensando no fim, se nem sabe?”. Eu tenho medo.